A colecionadora do tempo

(para Márcia e Carolina)

 

Carolina
Era uma menina
Que colecionava
Cacarecos
Tralhas, bagulhos
E trecos
Às vezes, pregos
Outras vezes, copos
Seu armário
Era um depósito
Digno de catador
De papel
Ali, se encontrava
De tudo!
De bicho felpudo a anel
Tampa de iorgurte
Saco de biscoito
Tampas de refrigerante
O escambau!
Até, pedaço de pau
Que pegava na rua
Colecionava
O que é de colecionar:
Figurinhas, álbuns
E também o que não
Se costuma guardar
Como, por exemplo,
Lata vazia de talco
Embalagem de xampu
Papel de sabonete
Cotonete
Roda de patinete
Mesmo um quebrado
Capacete
No armário ia juntando...
Juntando... amontoando...
Colecionava e guardava

Seu pai, um homem
Metódico, se abria
O armário da filha
Ficava horrorizado,
Seus poucos cabelos subiam
Os olhos, arregalados!
Chamava a mãe,
D. Márcia, e começava
O seu sermão: isto
Não é possível! Assim
Não está direito! O que
Há com essa menina?
Coleciona a Carolina
Ate botão com defeito?!
Veja, para que serve
Esta porcaria, casca
De noz, caixa vazia,
Moeda velha, fotografia
Queimada, de onde vem
Essa mania? Por favor,
Pegue a Carolina e
Faça-a dar uma faxina,
Nesse armário dar
Uma ajeitada
Pro lixo com a bagulhada!
E D. Márcia atendia
O pai não estava errado
Embora mais irritado do que devia
E a filha também não estava certa
Embora mais esperta do que parecia
À mãe cabia, portanto,
Fazer o contraponto
Entre o método e a anarquia
Um pai muito organizado e reto
E uma filha apaixonada por seus trecos

A hora da faxina
Era triste para Carolina
Para jogar algo fora
Era uma grande ladainha
Tremendo deus-nos-acuda!
Não, isso não!
Também não!
Não, nem pensar!
Eu coleciono
Capas de revistas rasgadas
Fitas de vídeo quebradas
Discos que ninguém quer mais
Mas, Carolina, minha filha
Seu armário virou um brechó
Seu pai tem razão
Onde já se viu colecionar
Folha de árvore, besouro morto
No algodão?!
É para uma experiência!
E a folha de árvore?
É para marcar meus cadernos...

Se o pai passava na porta
Do corredor exclamava:
Santo Deus, que inferno!
A troco de quê tantas caixas de fósforos
E estes isqueiros vazios?

Para tudo, porém
Carolina tinha uma explicação
Mais ou menos convincente
Às vezes sim, às vezes não

Mas D. Márcia, com jeitinho
Juntava duas ou três sacolas
Que iam direto para a lixeira
Ajudava Carolina a decidir
Entre o que era importante ou
Pura besteira
E assim o armário respirava...

Aproveitavam para arrumar as roupas
Pendurar as saias
Organizar gavetas
Quando a faxina terminava
Carolina exultava
Seu pai extasiava
E D. Márcia se ria
De pai e filha de veneta
Ambos temperamentais
A mãe os achava iguais
E os amava igualmente
Sorria, secretamente
Imaginando que um dia
Aquilo que era mania
Virasse algo diferente
Um dia, essa menina cresce
Com que será que se parece
Este interesse que tem
Por colecionar cacarecos
Bagulhos, tralhas e trecos?
No que isso vai dar?
D. Márcia não se cansava
De perguntar...

Você, o que colecionou?
D. Márcia ao marido indagou
Moedas, botões de galalite
Cédulas, figurinhas...
Então?!
Mas, ela coleciona
Pedaço de pau!
Isso passa, não faz mal, isso passa
Antes disso, o armário explode
Virou lanchonete de traça!

Uma vez ao mês
Vou lá e dou uma geral
Que tal?
Menos mal...
Então!

Mas, e quanto à coleção da Carolina?

Deixe a menina
Deixa ela colecionar
O que bem entende
Vai saber o que pretende...
Nem ela mesma sabe
É verdade, por isso não se meta
Cada louco com a sua mania
Cada mania com sua faceta
E se for historiadora
Arqueóloga
Paleontóloga?
Já está praticando...
Você endoidou...
Sério, deixe a menina
Ah? Carolina! Carolina!

Carolina
Era uma menina
Que colecionava cacarecos
Tralhas, bagulhos
E trecos

Com alegria peregrina
A jovem Carolina
Juntava em seus guardados
Muito do que descobria
E lhe inspirava cuidados

Mas, se você lhe perguntasse
Sobre um fato passado
Mesmo escondido no tempo
Carolina não hesitava
Em trazê-lo para o momento
Sua lembrança afiada
Sua memória danada
Parecia saltar de dentro
Daquele armário repleto
De lembranças e objetos
Que explicavam os seus
Movimentos

 


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