vives em mim, irmão, pleno de presença; onde hoje medra o silêncio de tua voz, ouço teu riso, irreverente, a reverenciar da vida seu sentido único - de liberdade; ouço tua voz, vezes estridente, a contestar dos homens sua bovina vocação de rebanho; teus verdes olhos, tantas vezes bassos de [desesperança, a reivindicar da pólis seu destino solidário; tuas mãos, cujos toques em minha face roubou-me a morte, insistem em passear por meu rosto, na companhia quente da lembrança; ainda sorrimos e choramos, juntos, como o fizemos na paisagem fraterna de nosso breve encontro nesta terra; renovam-se meus dias sob o sol sem que te percas de mim: tua presença inarredável em meus botequins, no modo mesmo de tragar este cigarro, no jeito mesmo de exclamar os palavrões (puta que o pariu! por que partiste tão cedo deixando a mim as alças de dois de nossos mais caros ataúdes?)grande é a pequeneza da lembrança, feita de miudezas vezes tantas desprezíveis à compreensão alheia... vives em mim na plenitude de tua grandeza, vives por teus gestos mais largos, amor desprendido e tolo que praticaste, anônimo, em meio à turba, sem direito a reconhecimento; vives como viveste: a contestar o poder com murros em ponta de faca e um interesse profundo por causas perdidas e coisas perdidas como o homem; vives como viveste: arredio ao logro e ao lucro, refratário a rapapés, mesuras, fingimentos, desinteressado de tudo que não fosse sonho, paixão, compaixão, alumbramento; vives em mim, ainda e sempre, como tumulto e picardia, humor, sarcasmo, inteligência, ironia, entregue ao teu próprio encantamento; vives, pois, como o sopro de uma alma tardia, cujo revelar-se fez-se por ocultamento.