Poema do oceano inacabado

meus olhos
dois faróis no mar escuro
fraca luz no colo da candeia
cujo óleo de baleia
serve à chama o seu brilho
                     - como a mãe o leite serve ao filho
e esse pouco combustível
é toda luz possível
em meio à amplidão
noite fechada
sem estrelas
vai a embarcação
no dorso das ondas
a serpentear
sobre este animal marinho
que é o próprio mar - dragão indescritível
sucedem-se aos vagalhões a calmaria
e pouco muda quanto ao desconhecido
por mais que saiba as rotas
sigo perdido
interrogado em minha solidão
o que são meus olhos diante do oceano
o que há de humano nesta desolação?
vai o barco
à guisa de astrolábio, leme, bússula
à deriva sempre quanto ao seu destino
que cais, que porto
a prover conforto
se são meus pés as águas em que afundo
para ganhar calado neste mundo
e ser por dentro a irisão da luz?
chega a alvorada
o sol posto ergue-se, solitário, no horizonte
tão solitário hoje como ontem
a fome faz-me viver no convés
onde tenho os pés enxarcados
um arpão nas mãos
e os olhos, por assim dizer, marejados
avisto um peixe que a embarcação atrai
e por ele estou também atraído
mais que faminto, quero viver
e fisgá-lo é todo o meu modo de ser
dá-se a luta no vago das horas
enquanto morremos ambos
para o dia de ontem
foge o peixe da minha intenção
acelero em sua direção
os ventos sopram diversos
múltiplos e aleatórios
ora nos aproximam
ora a distância ensinam
os ventos sopram, assobiam, zunem
as ondas voltam, revoltas
com tamanho e força
e intevém na luta
entre o peixe e mim

escapa o peixe, por fim
escapa o próprio mar
                     - é o que me parece
estou condenado a seguir-lhes
eternidade adentro
enquanto dura o meu breve
e frágil acontecimento
percebo o balé das ondas
subo e desço
subo e desço
subo e desço
por vezes ao nível do enjôo
por vezes, do gozo - depende
tudo depende
depende de algo que está além de mim
nas profundezas deste oceano
que me tem por palha
                     - lâmina flutuante
presumo paisagens abissais
a imaginação é um escafandro
ou um traje de astronauta
                     - tanto faz
para onde quer que vá
acima, abaixo
adentro, afora
resulto nulo na hora
ninguém me ouve
ninguém me quer
ninguém me sabe
não há motivos...

retomo a minha solidão
à flor da água
com meus fracos faróis de candeia
resta-me pouco óleo de baleia
                     - a esta altura
e minha locura
torna a considerar
a captura do peixe
preciso fisgá-lo
onde está? - localizá-lo
na vastidão do mar
passam cardumes diversos
profusão de cores e desenhos
sinto fome... não, já não sinto fome
nem medo... lá está o peixe à frente
dois desejos se procuram
o mar oscila
volta a noite
o céu agora está límpido
as estrelas pontilham o manto negro
continuo mínimo
o peixe tornou a evadir
                     [por entre as vagas fundas
sigo só
a embarcação descreve um rasto de luz
na noite escura

e o sol, de súbito
evolui por saltos, tropel de luz
na manhã radiosa, clarão
de cego: nada vejo
do que se parece óbvio
esperar que veja
mas - que fazer? -, não vejo
e assim velejo sobre o tapete flutuante
recito salmos
crocito poemas menores
                     (da própria lavra)
regorgito verdades não sabidas
que me ferem com seus fatos ocultos
a barcaça soçobra
de novo o vento ruge
                     - leão marinho
e tudo vai em rumo ignorado
tudo que sei é tudo que ignoro
e é tudo que gostaria de vir a saber:
para onde vou
quando chega o porto de partida?
vem a tarde
e lá está o peixe à flor da água,
as plumas do dragão,
monstro marinho, no rebordo
da embarcação cansada,
apenas decoram a linha d'água
com seus movimentos;
lutamos, o peixe e eu,
torna a evadir, falha
repetidas vezes o arpão
como um tigre aquático
e volta a noite
e vem a alvorada
chega o dia
e ali estamos nós mesmos
parados em movimento
estáticos no tempo
que corrói o casco
nada que se possa fazer
senão sobreviver às vagas
até ser engolido por elas
qual? não importa
sua intenção? não têm intenções as ondas
eu é que me perturbo
com perguntas demais
em torno de uma falta assombrosa
de explicações razoáveis
nada deriva de nada
                     - percebo agora
tudo é em si mesmo
                     - as causas só fazem sentido à ficção
o resto é a história
que aderna ao mar do esquecimento
tenhamos vivido
tenhamos morrido
corro à proa
não há âncoras
subo à gávea
o horizonte é sempre lindo
                     [porque está distante
desço à casa de máquinas
o óleo continua a esgotar-se
mesmo o casco range às ondas
são os ossos de uma invenção que navega
castigada pela sede
volto ao convés
giro à roda dos pés
as botas rotas
a calça surrada
minha japona azul-marinho amarfanhada
como me sinto elegante em meus andrajos!
tudo de novo e sempre
um sempre breve e provisório
cheio de tribulação e tédio
no entanto, sempre
e de novo tudo
noite agora em tempestades
vou sugado às alturas
o peixe! pareço avistá-lo
no estalar granítico das ondas
vou quebrar
não vou quebrar
premo os olhos
subo desço
desço subo
o peixe, ele cresce monstruosamente
                     nas sombras
confunde-se com as ondas
ambos sonham me pegar
                     - presumo, persecutório
diabos, nesta escuridão,
que coração não palpitaria ansioso
vergado por temores?
não me vão pegar!
                     - repito a mim -
não me vão pegar!
água por todo lado
pés enxarcados,
sal nos tornozelos
não! a noite passa
vem a lua
sim! vejo a lua
o cruzeiro do sul
as três marias
tudo que sei é tão pouco
para permanecer vivo
no entanto, é incrível, permaneço
apesar das rachaduras no casco que range
não obstante o medo
cessou a procela
não creio mesmo que houve um peixe gigante
                     [em sua rusga
era o vento, sim, o vento
a esbofetear meu pensamento
com o desejo de plenitude
pela proximidade da morte
tudo recua agora
ao ritmo das calmarias
sem interrogações, descanso ao tombadilho
eu poderia seguramente
com um pouco de orgulho
afirmar que venci
é uma idéia importante
não vou fazê-lo, porém
não sinto qualquer necessidade nisto
antes, sinto asco por toda exaltação
não me morda o mar
nem a mim me maltrate
com seu desmonte
isto é apenas a vida
a vida sem sentido
que vem do horizonte
afasto as respostas completas
contemplo minha incompletude
com certa satisfação
por sobre o cansaço
o barco que siga
a descrever seu rasto
quem poderá dizer que passei por aqui?
quanto dormem comigo no mar
                     [do esquecimento?
não, não pode ser para ontem o meu
                     [contentamento
nem para amanhã
resumo-me ao que não existe
nem se pode fixar ou permanecer
descrevo a trajetória do barco sobre as ondas
e sigo como se hoje não haja havido

a luz que deita ao mar
penetra as trevas abissais, sem alcançá-las
converte, porém, em doce penumbra
as águas tocadas por seus raios
e é esta luz quebradiça, dolente
que me permite avistar o peixe que desliza
sem o sentimento de sua monstruosidade
realiza-se o peixe aos meus olhos
não mais às costas deles
não é muito
mas, o máximo que posso alcançar...


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