18 de agosto de 2024 às 16:00
Das motivações íntimas da arte
Ao cabo - ou quase - de todo o dramático esforço para a elucidação da parábola de Dramaoquê?! como representação a um tempo autobiográfica e metafórica da atividade teatral contemporânea, o que constato pode muito bem ser explicado, ou descrito, à luz das pesquisas de Freud & cia. em torno do instinto e outras mazelas mais de nossas fundações como indivíduo e membro (êpa!) inseparável da espécie.

Constato uma profunda e insuperável ambivalência, voluntária e intelectual. Voluntária no sentido de certa incapacidade para decidir quanto à direção de uma ação. Intelectual no sentido de que abraça proposições contraditórias.

Resulta desta ambivalência o impasse atual que dissolve a polaridade básica da atividade intelectual - a relação sujeito-objeto - e me lança em um estado de letargia profundo, onde mais e mais me interrogo acerca das motivações íntimas que me conduziriam por este estranho labirinto simbólico, onde ora aderno, entre desgovernado e minimamente satisfeito, inseguro, entretanto, quanto às suas possibilidades de provimento objetivo para o ser - o meu ser, em primeiro lugar, que depende de sua expressão para se manter a si e, por outro lado, o ser geral, coletivo, indistinto, impessoal e difuso, a quem a obra de arte se destina e remete.

Não estou seguro de que o trabalho investido em Dramaoquê?! seja suficiente a generalizá-la (a ela, a peça) como obra de arte. Persiste a sensação de que possa ter redundado narcísico o meu esforço, intenção inexistente, cuja expressão, todavia, escapa-me e pode muito bem selar o destino da obra - se não a fiz flutuar a contento para além das doações autobiográficas de que lancei mão a fim de um controle seguro da fábula vazada desde as entranhas.

É o que me paralisa, neste exato momento, a dúvida que nasce do foro da ambivalência, mais que da inquietação intelectual.

Por outro lado, já é possível reconhecer o total esvaziamento de minhas motivações pessoais para prosseguir na investigação artística. Já afirmara isto anteriormente e aqui o repito: vai-se tornando, dia a dia, cada vez mais improvável e injustificável aos meus olhos o esforço egocêntrico - dito confessional - como ponto de partida para a abordagem de quaisquer temas. Creio que se encerra um ciclo com Dramaoquê?!, divisor de águas.

O problema é o lusco-fusco no interior da mente a confundir em sombras os contornos da nova e da velha realidade interior de minhas motivações íntimas, do que resulta o pânico e a paralisação. Dores por todo o corpo.

O que faço - tudo o que fiz - resume-se à busca de repouso para a maré insolúvel do instinto, afirmação, exibicionismo, narcisismo, sadismo, masoquismo etc. etc.? Como se a arte ou mesmo toda a atividade intelectual não passasse de um auto-erotismo onde uma punheta leviana - manuscrita, além de tudo! - servisse tão somente ao alívio da tensão inexplicada?

São perguntas procedentes, a literatura de Freud as comprova. Muitas vidas e muitas mortes as comprovam também. (Esses infinitos cigarros que fumo, enquanto não chega o dia da minha saúde!...)

De qualquer modo - é incrível! -, entre um trago e outro, a permanência do exercício da escrita como arte de investigação do espírito lança luz às profundezas abissais do ser, onde a escuridão dorme, ingovernável. E dessa doce penumbra, que supõe a ternura como ferramenta essencial à investigação infatigável, avança-se à estação seguinte e outra e mais outra, numa sucessão infinda e progressiva em torno do círculo que somos nós mesmos. Nós e a nossa falta eterna de nexo causal para aquilo que somos. Nós e um destino que se não explica senão por apreciação retrospecta - portanto, inútil, vã.

Vã como toda obra de arte e inútil como todo esforço de conhecimento impotentes para tocar a supercorda da vida, que é em si e por si o seu sentimento, este que não se explica nem se justifica. Apenas é.

De qualquer forma, a título de afastar possíveis compreensões anti-intelectuais do que digo, aqui reafirmo: só temos a consciência e a razão para fazer a travessia deste mar escuro e ancestral que persiste para sempre em nossa provisória atualidade.

De modo que, digo mais calmo, ao fim destas linhas: que se cumpra o meu destino a despeito mesmo da opinião risível que tenho dele!

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