02 de novembro de 2022 às 16:00
A César o que é de César
Instalada em um subúrbio a leste de Bagdá, numa espécie de Ciep iraquiano, sem o charme da grife Oscar Niemeyer, sob o comando, porém, do charmoso Sérgio Vieira de Mello, a missão humanitária da ONU - que acabou por vitimar o comissário brasileiro - vivia, e viverá por muito tempo, ainda, o impasse cruel de servir a dois senhores: de um lado, os altos objetivos de que se originou ao cabo da II Guerra Mundial (1939-1945) e, de outro, a dependência orçamentária dos Estados Unidos. Está, portanto, fadada ao fracasso. E a mais mortes. O português que substitui Vieira de Mello que se cuide.

Errou a ONU em se meter no Iraque ocupado. Principalmente, depois de anos de referendum às sanções econômicas impostas a partir da I Guerra do Golfo (1990) e que sedimentaram uma indistinção entre a própria organização e os países-membros da coalizão vencedora, à frente o Big Brother.

Ora, o Iraque tem de ser entregue à própria sorte dos americanos e daquele simpático rapaz inglês, o Tony. Toni, em linguagem circense, é um palhaço auxiliar do espetáculo. Parece que em política internacional, também.

Nem a ONU nem ninguém deve se meter agora no Iraque. Um conquistador tem de saber arcar com o ônus de sua máquina de guerra. Se vira, malandro, diria um Kofi Annan mais apto às responsabilidades com a paz no mundo. Ou, então, com jocosidade tipicamente brasileira: Collin, meu querido, quero que vocês se explodam! Era o mais provável mesmo de acontecer...

Pecou a ONU por bom-mocismo e subserviência ao Império, enquanto, imagino, cabia justamente a ela, como organismo de natureza supra-nacional, revelar, em embates sucessivos e persuasivos com o núcleo-duro dos falcões americanos, a natureza inteiramente ilusória do poder unipolar por suposto estabelecido a partir da derrocada do finado império soviético.

O mundo que se rearruma para viver a política internacional do século XXI, diferentemente do que supõem as mentes que sobreviveram ao século que passou, não tem espaço real para essa prática imperialista, superada por avanços tecnológicos e rearranjos da economia mundial que apontam para um efetivo multiculturalismo. Mesmo que demore um pouco.

Demorará menos à medida que instituições como a ONU recusem-se à legitimação de atos de conquista e entreguem-se, de fato, à construção de uma democracia plural e universal. O que não inclui, por óbvio, ir se meter em um Iraque ocupado ou um Afeganistão despedaçado por sucessivas ações militares com o mesmo fim. É preciso ter coragem para assistir à liquidação de nossas esperanças, se queremos, de fato, um mundo mais justo.

Mas, indagar-se-iam os homens de bem, e as populações civis desses territórios devastados, viramos as costas a elas? Não, claro! Toda ajuda humanitária, nestes termos, só pode ser desenvolvida a partir da própria população local, seus líderes, seus organismos da sociedade civil que sobreviveram à invasão. Às Nações Unidas cabe a disponibilização de recursos materiais. É a melhor maneira, inclusive, de proteger os funcionários da instituição da fúria cega dos grupos que travam a guerrilha de resistência ao invasor. Assim como Vieira de Mello não gostaria de ver tropas de ocupação em Copacabana, igualmente afegãos e iraquianos dos mais variados matizes políticos sentem-se agastados ao perfilar tropas anglo-americanas em seus países. As reações são inevitáveis, justificáveis, previsíveis.

E digo isto para colocar a urgente questão do reconhecimento do direito à violência.

Muito antes de ser monopólio do Estado, construção relativamente recente na civilização humana, a violência é condição ancestral na sobrevivência da espécie. É fruto não apenas de desejos recalcados, o que Freud explica e bem, mas, ainda, de uma ruptura da comunicação. Uma afasia do diálogo.

Se admitimos a violência praticada pelo Estado, seja em que modalidade for - da coerção social e política à guerra de conquista -, então, necessariamente, estamos a legitimar o uso pessoal e particular da violência por grupos e frações sociais. Este é um imperativo categórico da condição humana: o que vale para um, vale para todos. Independentemente da nossa vontade ou juízo de valor.

Condenar o terror é tão mais fácil do que condenar o direito à guerra, ambos, contudo, sustentam-se sobre a mesma legitimidade insana decorrente de características atávicas e sociais do comportamento coletivo e individual do homem.

Matar inocentes não é prerrogativa - se é que podemos classificar assim - do terror, mas, igualmente, das guerras e demais fenômenos ligados à violência humana. Aliás, a violência caracteriza-se por ir de encontro justamente ao inocente. E sem ele não se realiza. Duas facções criminosas em luta não praticam a violência, apenas um acerto de contas brutal dentro de seu modus operandi, a violência instaura-se ao transbordar sobre gente inocente ao entorno. Não é diferente com o terrorismo, seja civil ou de Estado.

O anseio pacifista dos homens - de certa forma expresso na construção das Nações Unidas - precisa encarar de frente a questão da violência, não basta confiná-la em apenas um de seus aspectos - atualmente os grupos guerrilheiros islâmicos como outrora o IRA, as Brigadas Vermelhas, o ETA etc. É preciso admitir que vivemos e damos sustentação política a um modo de produção baseado na força, seja pelas armas ou pelo poder econômico, ou por ambos combinados. A reação é inevitável, justificável, previsível.

A paz e o diálogo não prosperam na retórica, mas, na palavra em ação.

Se atentarmos para o fato de que a sede da ONU e de seus principais organismos executivos e foros de decisão localizam-se ou em solo americano ou das nações industrializadas da Europa ocidental, isso já diz quase tudo acerca de suas limitações e equívocos estratégicos como promotora da paz mundial.

Menos do que uma estrutura de altos salários para os membros de uma elite do funcionalismo público internacional, as nações unidas se deveriam resumir a uma tenda itinerante que, a cada quatro anos, ao modo das Olimpíadas, por exemplo, se deslocasse pelos territórios dos países-membros: ou por sorteio ou por qualquer outro critério de escolha, tal modo fazê-la, de fato, um organismo vivo do mundo. A interagir permanentemente com a diversidade dos povos, suas questões, suas características, suas soluções negociadas ao nível do quotidiano. Que é o que interessa, de fato.

Como tem sido até aqui, a ONU é um braço de referendo do G-8; em particular, dos Estados Unidos, seu maior contribuidor financeiro (em atraso, frise-se). Nestes termos, nem toda a competência técnica de seus organismos e quadros técnicos é suficiente para torná-la apta à promoção do entendimento em busca da paz universal.

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O vídeo exibido à época pela tevê libanesa LBC com o grupo Exército de Maomé, que reivindicou a autoria do atentado, é emblemático. Vestidos como ninjas japoneses, os milicianos exibem seus armamentos pesados e ostentam o símbolo hippie de paz e amor nos dedos erguidos da mão direita. Um contra-senso que apenas expressa, com fidelidade absoluta, o tempo de insanidade que vivemos e que não será superado por uma diplomacia mundial servil aos interesses das indústrias de armas, petróleo e gás dos Estados Unidos.

Como disse o Cristo em sua breve passagem por terras da Palestina, a César o que é de César.

O caminhão-bomba que nos privou a nós de Sérgio Vieira de Mello (1948-2003) e de seus relevantes serviços à paz universal pertence a César, divirta-se! Nós, choramos a perda do brasileiro.
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