04 de novembro de 2022 às 00:00
A primeira noite de um morto

A primeira noite de um morto
é a mais triste e estranha
O mundo não faz mais sentido
Tudo que conheceu
está irremediavelmente perdido
Se ontem sorria, já não sorri
Se sonhava, não sonha mais
Está só, sem que seja coisa alguma
A noite não traz o silêncio
porque o morto é o silêncio
Seu corpo está pronto
para apodrecer ou arder
Todos se foram
ao fim do funeral
deixando-o para trás
Sua história cessou
Cessou sua memória
E, no entanto, tudo nele
parece apto a viver mais um dia
ou, pelo menos, um segundo
Não tem mais dia nem segundo
Vinte e quatro horas antes
e podia fazer planos
Tinha essa possibilidade nas mãos
Agora, não tem sequer a si
Mesmo sua lembrança, se há, está com outros
Não há batimentos
Não há pulsação
Não há sopro
Não é mais nada
Uma música reta
Uma hora parada
Vai ser tragado pelo tempo
engolido pelo espaço
ao mar do esquecimento
até que não reste sequer a espuma da onda
onde vibrou o seu corpo
E esta história sem história começa ali
Na primeira noite de um morto...

Será que aparece alguém
para nos consolar a saudade da vida?

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