08 de novembro de 2022 às 16:00
Da personagem à persona
Manoel Carlos, teledramaturgo, em entrevista ao jornalista Roberto DÁvilla, ao abordar o falecimento do ator Jardel Filho durante uma telenovela de sua autoria, Sol de verão, de 1986, narra o embate com a direção da emissora, Globo, onde defende o fim da trama em função da morte do intérprete do protagonista - sobre quem toda a história fora armada -, o que de certa forma acabou acontecendo em mais dezoito capítulos, e compara o episódio com outra morte em meio às gravações, a do ator Sérgio Cardoso, em 1972, quando foi substituído por Leonardo Villar, sem maiores explicações à audiência. Um saiu de costas e o outro entrou de frente. Eu me recordo disto, foi em Pigmaleão 70.
Os dois casos - separados por quatorze anos de evolução do papel da telenovela nos meios de comunicação no Brasil - são ilustrativos, especialmente da mudança do conceito de personagem para o de persona, onde o próprio ator passa a encarnar determinados conteúdos que variam de trama para trama, mas que repousam sobre sua imagem pública, que ele empresta a esta ou aquela personagem, identificada com suas características pessoais e midiáticas, isto é, a imagem simbólica cristalizada através dos anos de prestação de serviços à teledramaturgia nacional.
Se em 1972 era possível simplesmente substituir um ator carismático como Sérgio Cardoso, em 1986 a substituição de outra estrela do porte de Jardel Filho já era questionável. Atualmente, então, não há a menor possibilidade de acontecer uma substituição como esta em caso de morte, pois a identificação entre ator e personagem atingiu um nível diluidor de indistinção. As tramas apenas reutilizam continuamente - seja na tevê e em boa parte do cinema - a persona pública dos atores para a construção de personagens sem qualquer conteúdo particular e nenhuma singularidade como carácter. Algo que Hollywood também faz em nível mundial. Não rende bons títulos, com as excessões à regra, mas boas bilheterias, certamente. É o que interessa, pois não?
É estranho tudo isso, porque de certa forma esta maneira de se relacionar com a dramaturgia televisiva ou cinematográfica implica um suicídio parcial do ator como ente artístico, que ele comete para se manter ativo na profissão. Mesmo que como um zumbi de si mesmo, em muitos sentidos mais do que eu gostaria de admitir. Na verdade, o preço da sobrevivência profissional - para a maioria ou mesmo a totalidade de nós, atores ou artistas em geral - implica neste suicídio calculado do que nos levou a escolher a arte como profissão. Cometida esta espécie de arakiri português (ritual onde os dedos indicadores desempenham função capital), só nos resta aceitar papéis parecidos com os que desejaríamos fora da grade da programação ou da tela grande. Fora da cela em que muita vez nos vemos aprisionados em busca da liberdade infinita prometida, romanticamente, pela arte...
Fazer o quê? Ou é isso ou não é nada.