11 de novembro de 2022 às 16:00
Palhaçadas, Tom & Theo e... Beckett?!
Revi, no final de agosto, a peça "Palhaçadas", do catarinense João Siqueira, em montagem de Julio Cesar Cavalcanti, vinte e oito anos depois de ter assistido ao espetáculo do Grupo Dia a Dia.
E revi, agora, no início de setembro,"Os sonhos de Tom & Theo", que escrevi em 1983, encenação de Filippe Neri, no Teatro do SESI, no centro do Rio, aos sábados e domingos. Filippe é um jovem e corajoso produtor e diretor de 25 anos de idade, a mesma que eu tinha ao escrever a peça.
O teatro infantil do Arnaldo Miranda
Transcrevo abaixo a apresentação da coletânea que reúne os quatro textos escritos sob a inspiração do saudoso João:
"Por volta de 1982, perdido nos confins do Texas - conforme referia, só de gozação, à inóspita e árida São João do Meriti, na Baixada Fluminense -, eu administrava um teatro do Sesc por lá.
Houve, então, uma temporada do infantil "Palhaçadas", de João Siqueira (1941-1998), levada pela dupla de atores Zé Antônio, do lendário grupo Dia a Dia, de emblemática atuação no teatro alternativo carioca dos anos 1970-1980, e Telma Moreno, com quem depois estive casado por alguns anos.
O espetáculo chamava a atenção por motivos vários, mas o que me fazia assisti-lo em todas as sessões aos sábados e domingos é que ele encerrava a chave de uma descoberta: criatividade e economia de recursos de um modo tal que nós, os tesos do teatro de periferia, podíamos sonhar, a partir dali, em levantar nossas produções modestas se seguíssemos atentamente aquela fórmula testada e aprovada.
Um outro trabalho também, uma montagem de "A onça e o bode", baseada em história do folclore, com o ator e produtor Marcelo Almeida e sua parceira de cena, cujo nome o vento levou, fazia estrondoso sucesso junto ao público escolar. E dramaticamente falando, a presença de apenas dois atores em cena funcionava muitíssimo bem, sem qualquer prejuízo para a ação cênica de ambos os espetáculos.
Foi a origem dos textos que se seguem, uma espécie de dramaturgia de sobrevivência, direcionada ao ambiente escolar e suas muitas limitações de espaço e tempo, um teatro pobre - no sentido grotowskiano do termo - que se projeta rico de intenções para o encenador, a serviço de ator e platéia, principalmente, onde o texto é dedicado a explorar os limites dessa relação fundamental ao teatro.
Posso dizer que a coisa funciona, pois montei e vi montar todas essas peças sempre com boa resposta de público e resultados de atuação surpreendentes. E os prêmios estão aí que não me deixam mentir. Ou mentem comigo!..."
Breve histórico das montagens
O primeiro desses textos foi "Os sonhos de Tom & Theo" (1983), que teve montagens em Porto Velho (RO), Santa Maria (RS), São Luís (MA) e Vitória (ES), afora as quatro encenações de minha autoria realizadas entre Nova Friburgo (RJ) e Rio de Janeiro, a última delas em 1994, com Claudio Gabriel e Izabela Bicalho. Somando todas elas, atingiu algo em torno de setenta mil espectadores.
Depois, veio "Hep & Reg" (1983), produção e direção de Ivan Merlino com bonecos de Marcílio Barroco, alcançou cem mil espectadores em três anos de temporada pelas principais capitais e as cidades mais importantes do país, e arrebatou prêmios, entre eles o Mambembe de Melhor Espetáculo da temporada de 1987.
"A bailarina e o mágico" (1988), teve uma encenação minha com o mesmo Zé Antonio e Grace Benzaquen, oriundos do Grupo Dia a Dia, substituídos em seguida por Claudio Gabriel e Denize Barim, afora uma outra montagem, em 1992, com Angela Cavalcante à frente do elenco, em Porto Velho (RO).
E, por fim, "Enquanto o mundo pega fogo" (1993), a partir do livro homônimo de Ruth Rocha, cuja encenação de Axel Ripoll, com Loly Nunes e Sérgio Machado, produção da Cia. Fanfarra Carioca, percorreu oito estados brasileiros das regiões Norte e Nordeste, tendo estreado em Salvador (BA).
Esperando Beckett?!
Com a montagem de "Os sonhos de Tom & Theo", de 1994, eu me despedi dos palcos, onde estreara em 1974 como autor, ator e diretor, não necessariamente nessa ordem.
Ao rever "Palhaçadas" nesse fim de inverno seco e ensolarado, que se tem alternado com dias frios e plúmbeos - prova de que, em Friburgo, até a natureza é ciclotímica -, ocorreu-me que a peça do João e os textos meus acima citados são todos, em verdade, tributários de "Esperando Godot" (1952), onde Samuel Beckett (1906-1989) põe em cena dois adoráveis mendigos, Wladimir e Estragon, por meio de quem faz correr o drama parado com que inaugura o teatro pós-moderno, por assim dizer. Há, é verdade, outras figuras ocasionais em cena, mas que não passam de escada para a narrativa centrada na dupla.
Nos meus textos, as demais personagens acontecem - sempre - a partir dos dois únicos atores em cena, que são o centro do trabalho e a razão de ser do jogo teatral com a platéia, neles está concentrada toda a ação narrativa. Acontece o mesmo no texto do João.
Mais, então, do que uma dramaturgia de sobrevivência, como pensei a princípio, o que se experimenta nesses textos são a solidão em cena e o encolhimento do teatro como forma ritual de expressão, no sentido de sua economia de recurso para buscar a síntese do que quer expressar, foi o que Beckett inaugurou, a meu ver; e não foi por uma questão meramente econômica que o novo século inundou de monólogos a cena contemporânea.
Há algo de solitário e de incomunicável nos relacionamentos atuais que leva o teatro a economizar-se de recursos (no sentido de despir-se) em busca de uma expressão verdadeira de sentimentos mais profundos.
O teatro infantil precisa fazê-lo com, digamos, certo charme, e é bem por isso que recorri - tanto em "Os sonhos de Tom & Theo" como em "Hep & Reg" a um certo ritmo de desenho animado em ambas as narrativas, a fim de sugerir qualquer coisa de empolgante no andamento (acelerado como o nosso tempo) das suas histórias.
Afora as referências de "Godot", do Beckett, e de "Palhaçadas", do João (a primeira, nunca me ocorrera anteriormente, e a segunda me guiou desde sempre), os quatro textos infantis para dois atores que escrevi, ao longo de exatos dez anos, têm por princípio comum a percepção de que a criança, longe de ser um adulto em formação, é um ser humano completo em seu processo de desenvolvimento.
Ou dialogamos abertamente com ela/ele (a criança/o ser), de igual para igual, ou corremos o risco de falar para as paredes de um teatro cada vez mais vazio... vazio de intenções é o que quero dizer.
(5set2010, ar.)