23 de novembro de 2022 às 16:00
Chicotes, cabrestos, camisolões e alfaias
Outro dia, conversava com a escritora Yedda Pereira dos Santos, amiga friburguense que revisito com regularidade bissexta, e ela me explicava, com a sábia candura de quem os anos alimentaram da necessária paciência aos nossos usos e costumes, que o público leitor é, em última instância, o grande responsável pela enxurrada de péssimos articulistas que abunda na imprensa brasileira, pois toda vez que um bom escritor reinvindica a justa remuneração por sua pena, basta aos empresários do setor substituí-lo no dia seguinte por um cabeça-de-bagre dos muitos que se amontoam, por puro oportunismo exibicionista, à sua porta, independentemente de qualquer remuneração. "E o público aceita, aceita qualquer porcaria, não compara, não exige qualidade. E, assim, vamos que vamos..."
Claro que falávamos daquela imprensa que o decano Villas-Bôas Corrêa define como "o delicioso jornal de província", mas creio mesmo que a observação de Yedda é extensiva e toca o nervo exposto do temperamento brasileiro: sua tolerância excessiva, às raias da complacência, quando não da condescendência criminosa (artigo 320 do nosso código penal) com tudo e qualquer coisa que nos enfiem goela abaixo - ou nos derramem reto adentro - e que simplesmente aceitamos, sem chiar nem estrilar, pois uma das regras de ouro (não escrita) da sociedade patriarcal brasileira é justamente aquela expressa no ditado popular bom cabrito não berra. Um erro!
Recordo-me aqui de um incidente de juventude com um trocador de ônibus, de quem exigi cinco centavos de troco e ele, muito contrariado, acedeu com a seguinte asseveração em tom de reprovação moral: A gente deve criar caso por muita coisa, jovem, não por pouca. Outro erro!
Creio que se estrilássemos, chiássemos, berrássemos e criássemos caso por tudo que se parece pouco ou insignificante - como os cinco centavos de um passageiro à razão de, digamos, um milhão de passageiros/dia nos meios de transportes coletivos cariocas - muita presepada (lesiva) deixaria de acontecer neste país e os espertalhões que nos governam perderiam em fração de segundos o seu aparentemente inesgotável poder de ilusão. Porque, em verdade, não são eles que nos iludem - o truque do trocador, por exemplo, falhou comigo e subtraí sua féria extra - mas somos nós que desejamos ardentemente (e bota ardência nisso!) nos iludir por todo o tempo.
Apenas o traço característico de sado-masoquismo do caráter nacional explica suficientemente a razão para um povo de índole generosa cair, tão facilmente e de boca, na esparrela secular da mais espúria subserviência mental. E braçal, é lógico... que à primeira sucede invariavelmente a segunda.
Não é meu objetivo, porém, denegrir ou embranquecer um povo tão fantástico como o pardo tropical e sua ternura açucareira, tataravó do biocombustível. Meu objetivo é repisar e percutir a observação de Yedda, enfatizando a nossa imensa responsabilidade, não só diante da imprensa livre desse país (por vezes, livre de critério ou simancol, caso daquele rapaz que tartamudeia na quarta ou quinta página de O Globo) mas, principalmente, diante das instâncias democráticas para onde devemos carrear, indefectivelmente, a nossa pressão, o nosso protesto, o nosso boicote, o nosso voto de censura, a nossa moção de apoio e tudo mais que nos faculta o exercício pacífico e fidalgo de nossos direitos e obrigações civis.
Chego ao cabo (mas não ao talo) de 2007 convicto de que a democracia é a nossa única alternativa viável de convívio, onde cabem o Bush (apesar de a fraude do ano 2000 que os americanos engoliram), o Chaves (prefiro o Chapolim), a Cristina, a Bachelet, o Evo, o Luiz Inácio e até o (extemporâneo) rei Por que não te calas?
Não é o mundo que precisa acreditar na democracia, somos nós, os cidadãos do mundo, a quem cabe exercê-la, defendê-la e professá-la em seus mínimos detalhes. Em quem votei para vereador, prefeito, deputado, senador, presidente? Preciso acompanhar a performance desses caras, eles passarão, eu continuarei comigo indefinidamente, preciso me respeitar, devo abarrotar seus e-mails, suas postas-restantes com a minha inestimável, modesta e insusbtituível contribuição. Nas audiências públicas de todo tipo e sorte, como quem evade ao emprego para um cineminha adúltero na tarde chuvosa, preciso arrumar um tempinho para comparecer às plenárias e solicitar dos entendidos (com todo respeito e trocadilho) os devidos esclarecimentos, por que isso, por que aquilo, quem disse que o mundo é redondo, que o homem é apenas um cérebro grilado por tênues, sinuosas e extensas tênias etc. etc. Preciso perguntar tudo! Nada de cinismo classe média blazé, nada de existencialismo burguês regado a cocaína, o negócio é forçar o óleo da mamona e obrigar o poder a se coçar (e trabalhar!). Quebrar vidraça de prédio público é coisa de sindicalista com imposto sindical no bolso. Não vale. Temos de ser fidalgos, educados e lépidos como a linda Letícia Sabatella (sortudo Angelo Antonio!), temos de ter argumentos como o marido da Patrícia Pillar (sortudo Ciro Gomes!), mesmo que a grande imprensa brasileira pratique a democracia até certo ponto, apenas.
Não importa! Eu que não sou kardecista - e portanto não acredito em reencarnação - tenho apenas o exuberante milagre desta vida que Deus me deu (embora, às vezes, eu também duvide de sua existência) para fazer valer o prazer orgástico de minhas imensas e intranferíveis responsabilidades como homem e ente social, portanto, é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a vida, ela é uma dádiva, não uma dívida, cabe-nos usufruí-la ao máximo e fazer fluir seu bem-estar na mais completa e plena fruição do melhor de nós mesmos, eu penso. E isto passa por tomar nas mãos o próprio destino, jamais delegá-lo à representação de outrem. Isto passa, também, por um interesse genuíno e compassivo pelo outro, seu drama, sua tragédia, sua comédia tão igual e parecida com as minhas próprias. Estamos todos no mesmo e lindo balão azul, a ninguém foi dado o direito de reger nossas vidas, à exceção de nossos pais, logo nos primeiros anos de planeta, tudo mais pode e deve ser plenamente negociado e acordado previamente, e cumprido, afinal, foi para isso que os melhores espíritos de luz a freqüentar a Terra inventaram a democracia, um modelo de convivência baseado na lei (justa) acima de tudo e todos, cabe-nos, a cada geração, excedê-lo e aperfeiçoá-lo, testá-lo em todas as instâncias da coexistência, pô-lo à prova nas mais difíceis decisões: no amor, no sexo, na família, na escola, no trabalho, na sinuca, no pôquer, no vôlei (fala, Ricardão!) e onde mais couber a liberdade, a alegria, o amor e o respeito mútuos. (Estou entusiasmado com essa prática!).
Cada vez acredito mais em diálogo e mais em pressão, apesar de toda a tecnologia, o homem continua funcionando a carvão: é preciso botar fogo no seu rabo se queremos que aja, do contrário é a acomodação de sempre. A mesma que conhecemos em nós. Não dá para ficar parado. A vida dá trabalho e é justamente por isso que é tão boa e empolgante!
Se os partidos fraudam eleições na Rússia e na Flórida, que os cidadãos da Rússia e da Flórida se coçem, organizem-se, impeçam a bandalheira. Se as favelas avançam para dentro das reservas ambientais do Rio de Janeiro, que os cidadãos cariocas exijam a recomposição da mata. Como? Ora, perguntem-se a si mesmos! Chega de esperar por articulistas iluminados e salvadores da pátria! Todo mundo tem um vizinho. E, como disse Dostoievski, ninguém se salva sozinho...
A imprensa, a mídia, via de regra, só cuidam dos próprios interesses, mas alguma coisa elas também têm que fazer pela coletividade, de vez em quando pelo menos. Podemos protestar quando publicam imposturas, quero dizer, as mais gritantes, senão não faríamos outra coisa na vida! Mesmo que a seção de cartas se recuse a editar notas desabonadoras ao modo como o veículo se articula e posiciona (êpa!), os registros vão se acumulando na redação e uma hora, mais tarde ou cedo, chegam ao conhecimento dos anunciantes. Todavia, se o leitor obedece ao rei e se cala, aí é que não acontece nada mesmo. Temos de pressionar. E muito! Diariamente. Incansavelmente. Em nome de uma idéia que todo mundo só acredita de boca, mas que, de fato, é real e a única que pode efetivamente funcionar a favor de todos: a democracia.
A democracia não tem qualquer mérito extra à exceção de sua essência, sua prática é nebulosa, escorregadia, traiçoeira e evasiva porque ela é operada pelo macaco macambúzio, este que somos e um dos quais ora lhe fala. O Brasil, por exemplo, é um país de idéias liberais e temperamento autoritário, se não investirmos pesado na grande obra do debate, na empreitada gigantesca do diálogo, nas tarefas hercúleas e ciclópicas da prática quotidiana da democracia representativa e participativa (com alguns referendos e plebiscitos, vá lá), jamais vamos sair do fosso da barbárie onde nos meteram a Coroa portuguesa, a igreja católica e os senhores de engenho (pouco engenhosos, é fato) com os seus chicotes, cabrestos, camisolões e alfaiaias.
Bom cabrito é o que berra, esperneia, chia, estrila. Encerro bem ao estilo da academia, com uma citação. Torquato Neto. Leve um homem e um boi ao matadouro, o que berrar mais na hora da morte é o homem, nem que seja o boi.
Você é boi? Eu sou homem! (bem, sem exageros...)