15 de dezembro de 2022 às 16:00
Garfield & Mônica
Por conta da vocação, sou comumente escalado para fazer os deveres de Português com a minha temporã. Algumas mães, como a minha mulher, partem do pressuposto - equívoco - de que escritores necessariamente entendem de gramática e disciplinas afins ao estudo da língua. Trata-se de rematado engano que tenta nos conferir a nós - escritores menores - certa importância cada vez menos provável, não só às nossas pessoas, nulidades ambulantes, bem como ao próprio idioma, patrimônio dilapidado por nossos próprios professores e mesmo por alguns de nossos mestres - a quem a última flor do Lácio já não desperta interesse, menos ainda o respeito que lhe devotaram gerações passadas de cultores e inventores do Português, tais como Camões, Pessoa, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Drummond, entre tantos.
É comum encontrar erros gritantes de aplicação e no uso da língua nas provas e exercícios de casa de minha filha, que me recuso a corrigir e aceito como realidade irreparável. Estamos mesmo fornicados, é o que me digo em silêncio.
Mas, desta vez, o inconformismo extravazou nestas linhas. O dever de casa desta quinta-feira, fora a classificação de graus comparativos, incluía uma redação. O tema vinha indicado em folha à parte, colada à página do caderno, onde se podia acompanhar uma tirinha do simpático Garfield.
Homem cansado de esgrimir-se no corpo do quotidiano por questões que a quase ninguém remontam significado, tratei de engolir em seco os meus olhos críticos e, como um pai comum, corriqueiro, sem nenhum apreço especial por esta língua a quem devo a mim mesmo, sem exagero, pus-me a auxiliar a pequena em sua tarefa escolar sem sobrecarregar-lhe o carma com as dores de meu ofício - polir a língua Portuguesa com a minha própria língua, cultivar a identidade da civilização bárbara brasileira.
Calado, li com ela a tira do Garfield, de quem sou fã, que ela deveria descrever em texto corrido da sua composição. Ao final, para minha grata surpresa, espontaneamente, minha filha indagou-me se a redação tinha de ser com as mesmas personagens - no caso, o gato Garfield e uma aranha que ele esmaga à parede - ou se ela podia escolher outros.
Exerci minha pequena parcela de desobediência servil ao Império e disse um pode, entusiasta e libertário. Porém, discreto, de voz abafada para não revelar minha inteira e orgástica satisfação.
A pequena, então, tomou a Mônica - dos quadrinhos brasileiros - como protagonista e uma barata para ser morta, seguindo o mesmo modelo da tirinha indicada pela professora, e fez lá uma breve e bem articulada história em que a barata, coitada, se deu mal. Tudo isso, do alto de seus sete anos de vida. Quisera eu o mesmo poder de síntese!
Dever de casa cumprido - ao meu ver, com louvor -, restou-me a mim a interrogação que aqui deixo: imagine você se uma escola no interior do Ilinois ou mesmo no Estado de Nova Iorque traria uma tirinha do Chico Bento - do nosso Maurício de Souza - para ser decalcada por seus jovens alunos da segunda série primária... Of course que not, my horse! Simplesmente porque os americanos estão debruçados, desde a espinha, em sua própria cultura, que entendem como fator essencial de sua economia e de seu poder político sobre o mundo.
Que sentido pode haver em privilegiar a cultura de massas de outras nações em detrimento de nossos próprios ícones, na hora de educar os falantes de Língua Portuguesa, no Brasil? Que soma estamos fazendo em favor de nossa economia, que multiplicação de nosso poder político operações como esta podem produzir?
Não bastam os meios de comunicação em sua função de repetidoras, as lojas comerciais com nomes ingleses, os produtos idem, e todos os anglicismos desnecessários do economês, do mundo da moda, da informática etc., também a escola brasileira se vai engajar no desgoverno paralelo que subestima e avilta a nossa própria cultura?
A ingenuidade é o pecado mortal da inocência, na melhor das hipóteses. Nenhum professor, por mais mal remunerado, nem nenhuma escola, por maiores que sejam suas dificuldades financeiras, pode abdicar de seu fim último, que é a educação. E educar, por princípio, é prover o indivíduo de auto-estima e de júbilo por seu universo de origem, como fazem os americanos, antes que lhe chegue a hora de se abrir para a percepção do mundo como um todo e sua maravilhosa, indispensável diversidade cultural - onde figuram não só americanos, mas, chineses, indianos, russos, árabes, europeus, africanos, sulamericanos etc., sem qualquer hegemonia pressuposta. Nem necessária.
Por algum mecanismo que lhe é próprio, minha filha tratou de converter o Garfield em Mônica, personagem identificado com sua cultura de origem. Mas, o que me entristece - já não surpreende - é que professores e escolas sintam-se cada vez mais à vontade para investir contra a nossa economia e o nosso poder político como se recebessem ambos em dólar para isso. Não recebem, são voluntários! Não é incrível?! De fato, apenas devemos todos nesta moeda - e é só.
Não custava nada articular melhor os deveres de casa dos pequenos com os deveres desta grande nação para consigo mesma. Estranhamente, no entanto, parece que este tipo de reflexão e conexão não se opera senão nos desvãos marginais da sociedade, onde pequenos cultores da língua e apaixonados pelo Brasil padecem o desemprego crônico de suas melhores energias e vagam por aí como nulidades ambulantes...
Mas, eu cantaria como Raul Seixas: prefiro ser essa nulidade ambulante / do que ter aquela velha opinião cordata sobre tudo... (o sobre não obedece à norma culta da língua, mas a língua é viva e a tudo devora!)