10 de fevereiro de 2023 às 16:00
O confinamento
A vida parece nos confinar ao tipo de universo que somos capazes de dar conta sem maiores esforços. O que vivemos, no chão do corpo, são mesmo aquelas situações a nós próprios prosaicas - pelo que há de prosaico em tudo que conhecemos à exaustão pela dimensão do hábito.
Há uma rotina mental em nossa máquina de pensar e é esta rotina, mais que seu predicado mecânico, a razão essencial do confinamento acima aludido e que aqui não se explica. Constata-se. Constata-se com o mesmo cansaço que gradativamente exaure a esperança de suas ilusões contumazes.
O condicionamento é algo que avança de modo quase autônomo e subliminar no funcionamento da consciência, estabelecendo gradações várias de rotina para que suportemos, com o colorido destas falsificações, o que convencionamos chamar o vazio da existência - da perspectiva de uma sociedade do mal-estar e do tédio como a atual, onde as sensações de alegria e felicidade foram por assim dizer estupidificadas; em parte por conta desse confinamento crescente que nos isola a todos no interior de nós mesmos.
Somos cada vez mais artificiais, de tal modo que a gratuidade de sentimentos primários como o amor, a amizade - e, por conseguinte, a solidariedade - desvanece a olhos vistos em um horizonte acinzentado, por vezes sombrio, onde o outro, rigorosamente, não serve para mais nada além daquelas funções por nós próprios a ele atribuídas.
O convívio moderno, em suma, é um deserto raso de areia seca e ventos inóspitos, estes ventos que sopram diretamente dos céus de nosso confinamento. Contentam-nos as guloseimas. Tecnologias. Truques. Consumos. O tempo de cada um de nós exaure-se, inexorável, sem que nos seja possível extrair um prazer mínimo que console a viagem com data marcada de retorno que é a vida. Nem mesmo a informação subjacente da passagem de volta carimbada nos faz relaxar diante da peripécia de engodos produzidos que é o quotidiano. A quebra dessa rotina mental, seu rompimento exemplar, constituiria a grande possibilidade de expansão do campo de experiência da vida.
A mente humana é um fenômeno estranho, capaz de descrever em detalhes o seu cadafalso sem no entanto desmontá-lo a contento nem substitui-lo por uma pena de caráter alternativo, mais altruísta, digamos. Vamos engendrando, progressiva e meticulosamente, a nossa execução sem admitir recuos, enquanto tudo mais na natureza apenas segue o seu curso; atribuir à faculdade do pensamento o que há de trágico em um destino assim é algo que não dá mais para sustentar. Não é o pensamento a origem do tédio e do mal-estar; ao contrário, estes repousam antes na impossibilidade materialmente estabelecida para que a maioria de nós simplesmente rompa com suas rotinas mentais e descubra a cada instante um significado novo, diante do milagre inesperado que é a vida.
Quase tudo que vimos fazendo até aqui, ao longo dos dois últimos séculos, corrobora o confinamento e todas as vozes que o denunciam por louvor à liberdade são freqüentemente desautorizadas ou combatidas por um sofisticado sistema de dominação política que tem na estupidez e no egoísmo sua fonte precípua de poder. Um mundo de pequenos e grandes amendoins, servidos após cada jornada de trabalho, congrega - porém, não de modo fraternal - aqueles que mandam e aqueles que obedecem a esta ordem de coisas, onde a vida íntima dos indivíduos não encontra lugar nem mesmo em si próprios. Este sistema parece nos dizer: não queira beber em demasia o vinho da vida, contente-se com um copo grande da podre-delícia e olhe lá! Você não foi feito para sentir de um modo muito elaborado, amar os filhos, se tanto, já está muito bom. Tudo passa. A vida passa.
Não há solução individual para destinos coletivos. Lembro-me sempre disso quando vou sonhar com meu egoísmo. Este o drama do confinamento: a esperança saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Estamos de mãos abanando, à espera de nós mesmos.