26 de fevereiro de 2023 às 16:00
As três quedas de Deus
A falibidade de Deus, cuja existência admito em minhas dúvidas e hesitações de racionalista empedernido, pode ser apontada até mesmo por um reles mortal meio boçal como eu, graveto que não se separa da fogueira, em três momentos distintos da história da criação - o que, por sinal, coloca o tempo no cerne da existência, pelo menos quando, ou ainda, vista daqui, deste ângulo que ora ocupo na contemplação do existente ou possivelmente existente...
A questão da falibilidade divina pude constatá-la em três momentos distintos, sucessivos e cronológicos ao longo da história da criação, aqui entendida em seu sentido puramente simbólico: o primeiro, ao criar os anjos de onde, rebelados, originam-se as legiões de demônios; o segundo, ao conceber o homem para o paraíso terrestre - este que agoniza -, cuja sede de conhecimento e a curiosidade incontornável de sua faculdade intelectiva levam-no a optar por um plano diferente do original; e o terceiro ao considerar os hebreus como povo eleito para a tarefa de instruir a humanidade quanto à unidade de sua própria existência e transmitir a essência de sua lei. Aliás, a própria comunicação das leis de Deus, a lei mosaica, mostrou-se sob certos aspectos extenso comentário jurídico que teve de ser revisto a posteriori por meio da síntese cristã, que supera, de longe, a eficiência da constituição americana ao resumir-se em dois únicos mandamentos reunidos em um só enunciado: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo - momento este, desta enunciação, sumária e insuperável, em que se estabelece, então, o fim da história; daí porque, permito-me o comentário, a idéia permanente de um juízo final para os atos humanos que percorre, de forma subjacente, todo o enunciado moral da doutrina cristã.
Mas, o que aqui se registra é a constatação de um Deus que falha, não em si, mas no relacionamento com suas criaturas e vê-se na contingência - contradição em termos para Deus, admita-se - de conviver e relacionar-se ele próprio com os erros decorrentes de sua criação:
Uma legião de demônios que passa a atuar em contradição com suas leis e diretrizes, opondo-se ao espectro do amor e da misericórdia que encerra o projeto divino; representa, pois, o caos, a desordem, a quebra da lei e a perda da harmonia decorrente de sua compreensão e obediência;
A mesma situação repete-se no homem, cujo livre-arbítrio elege a libido do conhecimento e sua lascívia como o desfrute supremo de uma existência finita e precária, contingenciada por condições dadas e circunstâncias impostas que raramente, em casos individuais, e jamais, em casos coletivos, são capazes de promover a felicidade e seu desfrute tal e como nos foi dado percebê-la ou imaginar, do que decorre este hiato onde se abismam nós homens às voltas com perguntas que nos excedem de todo sem a menor possibilidade de vê-las respondidas, senão e sempre de modo infinitamente parcial, seja em que escala o for;
A história do povo eleito em seu relacionamento direto com Deus, um longo intervalo sem intermediários na caminhada da humanidade para a compreensão do conceito de Deus único, do ponto de vista social acabou por desandar em arrogância política (exclusão dos gentios), do ponto de vista moral em privilégios intoleráveis (saduceus, filisteus etc. etc.) e do ponto de vista religioso em um tipo específico de paganismo fetichista, alimentado por sacrifícios de sangue (o rito das duas pombas etc.) e outras barbáries.
Tirante o demônio, que se me parece uma força auxiliar de Deus a provar a excelência do homem como criatura provisória - e, nessa medida, um erro reaproveitado, senão com esperteza malévola, ao menos com rematado espírito de galhofa -, as outras duas quedas sucessivas do criador, a saber, a invenção do próprio homem e a escolha da cultura hebraica como o seu povo eleito, estão na raiz de sua decisão de vir a público, em vestes de carne, conservada porém a integridade do espírito, para reexprimir a verdade, a verdade política e a verdade moral essenciais à construção de uma existência precária, em ambiente físico de grande instabilidade, capaz de estabelecer a felicidade como fim último da vida, não mais do homem, apenas, mas de todas as criaturas do reino da criação.
Política por excelência, a doutrina cristã esforça-se por esclarecer o homem quanto ao único poder possível para o estabelecimento de uma organização social capaz de funcionar indefinidamente ao longo de sua existência provisória (e precária), tal modo lhe seja assegurado o desfrute pleno dos prazeres indizíveis do espírito. Em suma, o reino dos céus é aqui e agora, sob o sol - basta acatar o mandamento único.
Não obstante vivamos, desde o advento da anunciação desta lei última, o capítulo derradeiro do homem em sua trajetória como espécie - com todas as letras, não há mais aonde chegar em termos de parâmetro moral, depois do Cristo -, o fato é que dez mil anos ou mais nos aguardam nos livros de história enquanto quebramos a cabeça e o coração para entender e aceitar que o amor é, em si, por si e para si a partícula fundamental [de que também se ocupa a Física contemporânea, só que em outros termos] sobre a qual se estrutura toda a vida, a matéria, o espírito e a verdade.
Um Deus que falha - e, mais, que falhou, isto é, que se insere no tempo histórico, que desliza com suas criaturas no aro do tempo - é um Deus de relacionamento, um Deus de interatividade absoluta com o resultado e as escolhas de suas criações, é um Deus que olha a própria face no espelho de uma solidão abismal e que se quer a si compartido e também amado, tão quanto ama.
A falibilidade que aponto - longe de um dedo acusador e infantil - é a constatação madura de que nada existe sozinho ou por si ou em si ou para si, mas, antes, que habitamos um universo relacional e dialógico, onde o ato de criar requer igualmente o direito insuperável de amar e ser amado - tudo isto de um ponto de vista inteiramente simbólico, volto a frisar -, constatação de que foge o racionalismo por razões que não cabem aqui abordar.
De qualquer forma, a idéia de uma perfeição que falha por amor às suas criaturas bem pode ser a chave para se entender o porquê de termos nós, os homens, este sentimento recorrente de esperança e entendimento que a cada geração sucessiva renasce em nossos corações, não obstante os avanços igualmente vertiginosos da desordem e da discórdia como parte inseparável de uma natureza, a nossa, que luta para ser o deseja ser, mais do que simplesmente o é.