01 de março de 2023 às 16:00
Meu parceiro, o arranjador
Sentado aqui, no recesso do lar (tijucano), enquanto espero a hora de sair para buscar a pequena (nem tão pequena assim!) na escola, nessa reta final de provas, saboreando os magníficos arranjos de Claus Ogerrman e Eumir Deodato para as canções de Jobim e Vinicius de Moraes, na voz de Sinatra, talvez por me achar um tremendo sortudo nessa tarde quente e carioca, resolvo aproveitar o tempo vago para cumprir o compromisso (auto-firmado) de tratar publicamente de uma questão que vai ser parte das discussões em torno da atualização da nossa lei de Direito Autoral, ao longo de 2011, ao que tudo indica.
Em dezembro de 2010 participei, em Friba, de duas oficinas, uma de arranjo musical e outra de produção fonográfica.
Em ambas veio à tona uma mesma formulação (por parte dos oficineiros, chamemo-los assim, informalmente) que não gostaria de deixar sem resposta e, mais do que isso, que gostaria de aprofundar a elaboração e os argumentos em contrário.
A formulação foi a seguinte: a hipótese de que o arranjador é uma espécie de "parceiro" do compositor, em especial, do compositor de canção popular.
Uma vez que, diferentemente do compositor de música erudita, cuja partitura (ou grade) detalha a atuação de cada instrumento, o registro da canção popular resume-se, muito simplesmente, à linha melódica e, quando mais, à letra que a acompanha, ficando a interpretação da harmonia - e mesmo de outros aspectos formais da obra, como andamento e ritmo - a cargo de cada executante, seja músico ou arranjador.
Ora, não se pode falar em co-autoria, à exceção da letra, no caso específico da canção popular, para uma criação que decorre de outra que lhe é anterior e que a determina. A criação do arranjador funda-se na criação do compositor e não o contrário.
Porque a parte imutável em todos os arranjos feitos para uma mesma e única canção é, de fato, o que a identifica, caracteriza e determina: em primeiro lugar sua melodia e em segundo, se houver, sua letra.
Tanto assim que somos forçados a reconhecer o trabalho prévio do letrista original, mesmo em face de uma versão para qualquer outro idioma que não se atenha por demasiado ao aspecto literal da letra, mas, antes e sobretudo, à mensagem que quer transmitir - e que não pode ser alterada por qualquer tipo de liberalidade.
Senão viveríamos a insólita situação de uma única melodia com diferentes letras em cada país ou mesmo em um só país.
Ora, isso contraria um dos princípios basilares da obra de arte e da obra de arte musical: sua identidade, sua intenção, seu conceito, seu discurso, tudo isso intimamente ancorado (e revelado) por suas melodia e lírica (se ela houver).
Os arranjadores são tão essenciais para o trabalho do compositor que os chamamos amorosamente de parceiros, cúmplices etc. e os melhores deles, de fato, ajudam-nos na fundação ou no esclarecimento de determinados aspectos da identidade de uma canção popular.
Por exemplo, a introdução de Detalhes, de Erasmo e Roberto, arranjos de Jimmy Wisner, aquilo é meia-música, pode-se dizer, por hipérbole de pura admiração ao maestro norte-americano, mas, entenda-se, não existiria sem a composição em si, portanto, lhe é tributária. E não o contrário.
O mesmo não se dá com a letra de Detalhes, cujo parceiro, este sim, foi convidado pelo autor da melodia - se é que, no caso, não são ambos os dois ambas as coisas, compositor e letrista, concomitantemente - para compartilhar da criação daquela canção e assim torná-la única e definitiva. Independentemente de quantos arranjos ela venha a receber depois disso.
Sua identidade está definida e se sobrepõe a qualquer intuição criativa do arranjador, por brilhante que seja, como o são Wisner, Ogerman, Deodato ou Gil Evans.
Do ponto de vista dos direitos patrimoniais, contudo, entendo que o trabalho do arranjador faz jus a um percentual de direitos conexos superior ao dos músicos executantes e inferior ao do intérprete da melodia (com ou sem letra), fiel da identidade da canção.
Uma revisão na nossa lei faz bem em reconhecer e contemplar o trabalho essencial do arranjador, no entanto, sem incorrer na injustiça de tentar transformá-lo naquilo que ele não é.
Do mesmo modo que é irrenunciável o direito moral do autor sobre sua obra (a lei não me permite, por exemplo, renunciar à autoria desse artigo, por mais que isto me ocorra!), igualmente lhe é irrenunciável o direito de escolher ter parceiros ou não em uma ou mais canções.
Não há legitimidade alguma na ingerência indevida do legislador em uma seara íntima e pessoal, exclusiva do compositor.
Mantenha-se, pois, intocada a liberdade e a autonomia soberanas de todo artista criador.
Afinal, quantos arranjadores mundo afora têm pagado a sua comida e a escola de seus filhos graças à criação artística de Aquarela do Brasil, Garota de Ipanema e Yesterday?