07 de março de 2023 às 16:00
A merda e a água
Aqui, no infinitamente pequeno, onde habito e entrevo os dias à espera do ocaso de meus olhos, há coisas curiosas de se anotar, a ignorância, por exemplo, todos os oceanos para uma gota de sabedoria, a ignorância produz esplendores dignos do rei sol, pelo menos em um lugar como o Brasil, onde heterogeneidade étnica e desigualdade social elevadas à potência infinita produzem uma espécie de mistura de água e azeite no interior mesmo de cada indivíduo, de modo tal que nem em nossa própria esquizofrenia nos reunimos...
A empregada diarista de minha cunhada, cuja área de serviço comunica-se com a minha casa, varreu, nesta manhã de sábado, o meu quintal, e nisto prestou-me um favor ao recolher do chão as folhas do abacateiro que ali mantenho, a um canto do muro limítrofe do terreno.
Ao circular pelo corredor da casa, da sala em direção à cozinha, aos fundos, passando pelos dormitórios, eis que minhas ventas - cujas penugens foram devidamente aparadas agora cedo, ao barbeiro aqui ao lado, meu vizinho - constatam certo fedor insuportável, no ar. O que será, de onde vem? O cérebro formula, lépido, sem tempo para fazer descer à língua palavras que expressem a interrogação, é preciso agir, indentificar aquela merda de cheiro ou, melhor, aquele cheiro de merda. E era mesmo merda, merda de gato, do Valadão, que pertence à minha cunhada, cuja diarista, ao fim de sua faina, então, ao meu quintal, resolveu juntá-la - a merda, bem entendido! - sobre a terra do canteiro pelado que ali existe e exatamente em frente à janela do meu quarto de dormir, maravilha, não?
Não lhe ocorreu que aquela bosta meio pastosa do arisco Valadão ficasse a recender, empesteando o ar, não lhe ocorreu que o canteiro estava bem abaixo da janela do meu quarto, não lhe ocorreu nada do que deveria fazer, de fato, com aquela - literalmente - merda para agir de forma adequada, bastou-lhe apenas, na blindagem rotunda de seu discernimento, juntá-la bem ali, ao fim do canteiro, ao pé de minha janela. O meu quintal varrido, pelo que agradeço, e a merda amontoada ali, como um brinde olfativo ao meu espírito implicante!
Tomei as medidas cabíveis e tratei de eliminar a contento a fedentina dos excrementos amarelados do velho Valadão, o cagão, um dos gatos mais antipáticos que já conheci e olha que não foram poucos!... O que me intriga, entretanto, ao ponto de partilhar o prosaico da situação com o eventual leitor é o fato de que a ignorância, no Brasil, via de regra, vai constituir um ato singelo, inocente, de ignorar a alguém. A mim, no caso - o que me justifica a digressão inútil.
Há uma lógica no interior da ignorância, a despeito do que nos pode fazer supor o racionalismo. Uma lógica que, mesmo destituída de intenção, resulta sempre intencional contra terceiros. Por que a diarista não juntou aquela merda em outro ponto qualquer do canteiro, digamos, mais próximo à área de serviço da minha cunhada, obedecendo a um princípio de atratividade, por assim dizer, em relação à casa de onde lhe vem a paga por sua labuta? Mas, este raciocínio só faria sentido se me levasse em consideração do seu ponto de vista, onde resulto um objeto ignorado! Não: seguiu uma lógica outra que a orientou a juntar o lixo varrido ao fim do exíguo quintal, sobre a terra do canteiro, e ali deixar que as fezes fedessem até secar, ela não estaria mais por perto para saborear o aroma!
Há qualquer coisa, pois, na ignorância que representa um acúmulo de dejetos dos piores hábitos que se vão reunindo, geração após geração, sem que lhes alcance qualquer noção, mesmo rudimentar, de causa e efeito, presente nas ações que encetamos.
Em um sentido imediato, a ignorância é, sim, mais cômoda e menos trabalhosa, encerra-se sobre si mesma, com a vantagem de não merecer, do mais elementar esclarecimento, reação nem revide. Eu, por exemplo, não saí catando o grelo da diarista, simplesmente completei o seu serviço!
Um ignorante completo, entre indivíduos apenas medianamente esclarecidos, acabará por impor sua hegemonia e a dominação de seu modo de ser e agir, porquanto aparentemente indefeso em sua rudeza - que se pode compensar ou tolerar por virtudes outras que reúna - não hesitará em agir, a ignorâcia não concebe a hesitação, sempre de maneira intempestiva e mesmo lesiva, à medida que ignora por completo o mais que o exceda. Vai agir com pressa, precipitação, açodamento, vai desconsiderar naturalmente tudo o mais que desconhece e vai sobreviver, ao nível do imediato, sempre mais à vontade que aquelas pessoas medianamente esclarecidas à sua volta, como um bom dominador que é.
De tal forma que passaremos a vida a limpar-lhe as merdas postas ao caminho, sem que isto pouco se lhe dê. Há uma conveniência, portanto, na ignorância em permanecer como tal, sob muitos sentidos mais do que possa supor nossa vã pedagogia. Ela é reta, direta, autêntica, espontânea, assim se parecem as pessoas quanto mais ignorantes - o que não é exato nem corresponde a uma compreeensão mais abrangente, à medida que prolongamos no aro do tempo as conseqüências de seus atos.
Contudo, visto assim, no tabuleiro do quotidiano, oceano a afogar a gota, é justamente o ignorante e a ignorância que prevalecem na dinâmica dos relacionamentos e dos acontecimentos - como que por força de inércia ou mesmo em obediência à lei da gravidade que a tudo nivela por baixo, será? O dia a dia é feito de atos contínuos de exasperada ignorância ou estupidez, sua irmã mais velha e robusta. Ambas dominam a cena, embora não possam deter nem controlar o enredo do tempo histórico, terreno onde se semeiam os longos frutos da sabedoria.
A contradição está em que nossos corpos, breves bólidos desgovernados no tempo, trafegam a saber nas artérias congestionadas do quotidiano, sob apressados sinais de trânsito que nos empurram à velocidade máxima, à insensatez total de decisões precipitadas, ao desastre, enfim. Resultamos, então, ansiosos, muito ansiosos, e somos levados a agir, para sobreviver, com certa dose - crescente - de ignorância (de quem, como se sabe, o sofrimento é filho).
Isto, de certa forma, confirma minhas desconfianças de que, apesar da beleza natural estonteante do planeta, se admitimos que a beleza pressupõe harmonia, equilíbrio, ainda assim, a vida na Terra delimita-se por uma sucessão, contínua e incessante, de obstáculos e dificuldades resultantes de um desequilíbrio dinâmico e uma perda constante de harmonia.
Parece que as próprias leis físicas favorecem, pois, a ignorância, em detrimento de qualquer saber que se organize para detê-la ou enfrentá-la. Vivemos uma realidade onde é fácil e rápido destruir, e lento e penoso edificar, é o reino da igorância por excelência, que está sempre associada à força, à potência reativa, ao crime e à morte. A ignorância é, em suma, uma recusa permanente em considerar a existência do outro como a extensão de si próprio. Ignorar é, pois, ignorar-se, esporte predileto do homem. É estranho que as leis da vida favoreçam por princípio sua própria negação, é, porém, o que se constata à mais rude observação sobre a epiderme do quotidiano e à superfície visível dos fatos, que é para onde olha a maioria de nós.
Nossos cérebros conformaram-se - no processo evolutivo - a partir do erro, da violência, da arbitrariedade, da competição e do ódio. É o que se pratica abertamente na natureza e no interior da consciência humana, no dia a dia do mundo. A harmonia, a paz, a democracia, a cooperação entre as espécies e o amor são próteses mentais a que só nos adaptamos a muito custo, à custa de uma persistência cósmica da luz do conhecimento, cujas qualidades de prosseguir em seu rumo a assemelham a água. Eis aí toda a esperança possível.