25 de julho de 2023 às 00:00
Ladrão de amores

(do drama em um ato A Gaveta)

 

Roubaste o meu menino
Antes ainda que me chamasse pai
Ou aprendesse meu nome
Antes que me sorrisse a frágil ternura dos anjos
Ou me divisasse forte sombra do tempo
Antes que me tomasse por modelo e exemplo
Ou me fizesse o primeiro singelo e meigo presente
Roubaste o meu menino
Deste-lhe pão e ensino
E avós substitutos
Deste-lhe céu falso e abismo
E um caráter viperino
Tal modo o meu menino
Passou afinal a ser teu
Assim cresceu, turbado
Vítima de amor usurpado
Refém do que não era seu
Roubaste o meu menino
E ensinaste-lhe a cobiça, a preguiça, a malícia
Ingênuo ladrão cigano
                [na translucidez do engano
Trânsfuga a negociar carícias
Coração, no peito, furado
Os olhos nas coisas do outro
Nenhuma fé em si mesmo
E cresceu o meu menino
Joguete de pífias mentiras
No logro para sempre selado
Arrogante em sua estúpida ira
Delirante em seu grotesco pecado
Hesitante em dedilhar sua lira
Uma vida construída - construída?! -
                [sob escombros do passado
Roubaste o meu menino
Mas, não o fizeste homem
Deixaste-o pela metade
Abandonado ao caminho
Entregue à sorte e à sina
Do turbilhão, torvelinho
E tudo o que lhe deste foi muito
Para me humilhar, tão somente
Mas, para ele foi pouco, muito pouco
                [- e poucamente
Nada que o fizesse são
Nada que o fizesse lúcido
Nada que o fizesse se achar
Constituir-se espírito livre
Antes, do caos tornou-se súdito
Da desordem, o avatar
O filho adotivo aleijaste
Teu próprio filho amputaste
A mãe de ambos tu difamaste
E a mim tu me privaste do amor
                [que ele teria a dar
Compraste afeto a granel
Com moedas de uma casa de loucas
Semeaste a cizânia aos poucos
Até elevá-la ao nível dos céus
Comeste da minha árvore
Bebeste da minha fonte
Cultivaste na minha vinha
Rompeste meu horizonte
Manchaste a minha honra
Chagaste o meu coração
Seqüestraste-me a primavera
Resfriaste-me o verão
Entenebreceste-me o inverno
Com a ausência de meus legítimos frutos
O meu outono emplumbaste-o
Com teus amores prostitutos
Roubaste o meu menino
Agora, homem desfeito
Vida desgovernada
Pai também alquebrado
Filho inteiramente partido
Homem despedaçado
Sem afeto e sem sentido
Sentindo-se não mais que um bandido
A quem o bem só vem furtado
Eis aí teu resultado!
A obra de uma vida de infâmias
Demolir infâncias
Encarcerar vencidos
Colecionar insânias
Destruir sentidos
E tudo isto para quê, miserável - desiludido,
                [pergunto?
Se não podias colher senão
                [amores defuntos
Senão amargas colheitas,
                [misto de bílis e fel
Senão a seita cruel
                [de uma fé sem assunto
Roubaste o meu menino
Para pô-lo na vala
Para vê-lo na lama
Para tê-lo na cela
Para ser a espuma de um mar de procelas
Ou para crer na quimera de tuas porcelanas?
Por que roubaste o menino
Se já te sabias impotente, desde sempre,
                [para o ato sublime de criar
Se não te convinhas a dor, reincidente,
                [de perder, perder, perder... ao perdoar
Por que roubaste o menino, por que,
                [bandido, se não o podias amar
Se amar nunca soubes
Se amar nunca coube
                [no pote de ouro por carregar?

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