02 de agosto de 2023 às 16:00
A pílula rosa
Quero crer no amor como uma fisiologia, uma secreção hormonal qualquer que, suponho, pelas supra-renais ou talvez pela hipófise ou mesmo pela pituitária, derrame ao corpo seu manso furor. Esta hipótese, delirante, deriva em termos dos conhecimentos contemporâneos que lançam luzes novas sobre males antigos da alma, como a depressão, por exemplo, também conhecida como melancolia - ou, mais simplesmente, tristeza -, já passíveis hoje em dia de tratamento clínico com ampla margem de êxito. Eu mesmo experimentei cá uns comprimidozinhos que me deixaram por certo menos sorumbático, muito embora não fossem capazes por si de resolver as causas de tão renitente desolação. Mas, ajudam. E funcionam!

Imagine, então, cinqüenta anos à frente, os cientistas - sempre eles! - a comprovar que a falta de afetividade ou, mais exatamente, a incapacidade de amar, mal do homem, é uma disfunção hormonal que pode muito bem ser suprida à base de substâncias sintéticas complementares? Ahn? Vai ser sensacional!

Sairemos das farmácias, logo após a primeira dose, tomada ali mesmo ao balcão, já interessados no outro de forma nova. Com o passar dos dias e o avançar dos efeitos tópicos, seremos tomados gradativamente de uma onda de generosidade, amabilidade, carinho, sob o risco mesmo de nos apaixonarmos por todo mundo e qualquer um, cada criatura à nossa frente - face ao surpreeendente medicamento - parecer-nos-á uma criatura única e inconfundível - como de fato o é, mas, não vemos! -, passível de ser amada até à loucura, teremos então olhos definitivos para a singularidade oculta sob o manto da rotina quotidiana, esse roto cobertor curto em que diariamente nos cobrimos e descobrimos.

O remédio revelará nossa paciência, nossa perseverança, pertinência, esperança, persistência e sobretudo nossa compaixão. Inundados de uma disposição antes impensada para a vida, estes seres revigorados pelo uso continuado da nova droga sairão pelo mundo afora para o delito sublime de amar. Amar desbragadamente, sem limites, sem interesses, sem intenções. Nada de vincular amor ao sexo, banalidade milenar, nada de associar amor à sobrevivência, circunstância que a ambos agrilhoa, nada de submeter o amor à autoridade, termo que o avilta, mas tão somente amar com a alegria emergente dos encontros. Olhou, amou! Amou, encontrou! Encontrou, viveu! Viveu, seguiu! Seguiu, voltou...

E note bem que não estou falando de amor romântico nem passional nem amor entre sexos, falo apenas de amor, a droga nos tornará seres irremediavelmente amoráveis, comprometidos com o afeto em cada esquina. E quanto mais tomarmos as tais pílulas - possivelmente pílulas e possivelmente rosas - e mais o organismo vai viver uma espécie de superávit hormonal, mais as nossas glândulas entre si secretarão o idílio de uma humanidade amorosa. Vai ser um tempo hilariante, porém, sem os ares de estupidez que hoje gravam a euforia dos contentes, porque a alegria do amor é calma e constante, em tudo procura a duração e a estabilidade, em tudo vislumbra o fluxo e a continuidade do afeto lançado ao rio dos relacionamentos. Rumo ao mar.

Minha experiência diz que os gordos, naturalmente, produzem mais amor e tenho para mim que os futuros cientistas responsáveis pela descoberta das relações hormonais da afetividade o farão observando aos gordinhos para reconhecer-lhes a alegria de sobra e aos magros para compreender-lhes a secura de sentimentos, pois há inevitavelmente uma relação entre os dois tipos e a afetividade que produzem, decerto.

Tomara estes dias futuros - coisas futuras! - me apanhem ainda na Terra, a braços com certa inarredável melancolia e esse amor escasso ao peito, coração no sobretudo. Serei das primeiras receitas aviadas, pode crer! Assim, é claro, que a panacéia dourada, mesmo que rósea, descer ao rés do chão - onde se arrastam os tesos! Vou adorar experimentá-la e ver renascer no velho que já se vai a pôr os dois pés na cova a esperança mesma da imortalidade erguida à base de sucessivos sorrisos e amabilidades meras, tudo gratuito. Como o dom da vida.

No uso da nova - e para mim tardia - droga sorrirei mesmo aos cachorros de rua, aos sisudos funcionários de certo tipo de repartição pública, ignorarei vaticínios de economistas, considerarei irrelevante a irritação contumaz dos credores e apenas, creio, não conseguirei evitar a ojeriza e o nojo por fabricantes de armas e especuladores financeiros.

Se bem que em face de uma expansão desenfreada da capacidade de amar por certo estes dois prósperos setores da economia mundial mingüariam de imediato e a olhos vistos, afinal, já dizia o bordão feminista, quem ama não mata, e ganhar dinheiro aplicando na desgraça alheia não faz qualquer sentido quando o outro passa a ser compreendido como parte de mim mesmo.

Para quem quer acreditar que é possível esperar pelo amor a partir de drogas sintéticas - sem encarar as causas de nossa renitente desolação -, não custa nada também acreditar que estas duas calamidades da espécie, os fabricantes de armas e os especuladores financeiros, possam estar a caminho da própria extinção, quem sabe? Afinal, mesmo os dinossauros desapareceram um dia...



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