20 de janeiro de 2024 às 16:00
Os viralatas humanizam as cidades
Vai minha paixão por cachorros vira-latas desde a mais tenra infância. Perto de minha casa havia um açougue de um homem chamado Filé. Podia não ser original o apelido, mas, fazia sentido. Filé era um homem forte, parrudo, estatura mediana, de negros cabelos bastos e braços assustadoramente possantes, em especial aos olhos de um guri de seis para sete anos, idade que tinha quando me mudei de Olaria do Cônego para o número 112 da Rua Sete, no centro de Friburgo. O açougue do Filé ficava na esquina da minha rua com a General Osório. Não me lembro se já era amigo do Marquinhos, filho mais novo do Filé, quando isto aconteceu, mas Marquinhos e eu fomos bons companheiros de infância e suas maluquices nos divertiam a todos, a molecada da rua, Alfredo, Totonho, Carlos e Zé Luiz, entre tantos.

Isto que aconteceu, aconteceu em frente à casa dos Balbi, do lado oposto à calçada do Filé, que dava de frente para o armazém do Erthal, pai de Alfredo. A casa dos Balbi ficava ao lado do armazém. Era uma daquelas manhãs iluminadas de Friburgo, quando o sol, vindo de um céu azul intenso e intacto de nuvens, penetra o leito do vale e varre para as bordas dos morros suas sombras, lavando de luz o lugar. Uma cadela de porte médio, de pelo amarelo, as tetas chupadas de cria recente, caíra adoentada por qualquer motivo ao meio-fio da calçada, em frente à casa dos Balbi, e um homem malvado insistia em cutucá-la com uma barra de ferro, ferindo-a e humilhando. Ela regurgitava, estremugia, abatida. Aquilo era revoltante aos meus olhos, enchia meu coração de dó da cachorra, coitada, que pode ter sido inclusive atropelada, não estou bem certo dos motivos de sua enfermidade, sei que agonizava ao meio-fio e aquele homem, de aparência maltrapilha e ébria, insistia em fustigá-la com a tal barra de ferro, se é que era mesmo uma barra de ferro, salvo a mistura de lembranças e fantasias que povoam a memória do episódio. Não importa. Ela a fustigava, ela agonizava e meus olhos o fuzilavam do lado de cá da rua, em frente à minha casa, meu pai à alfaiataria, até que o Filé irrompeu ao ar livre da manhã iluminada, por baixo de seu guarda-pó branco manchado de sangue, e cobriu o infeliz na porrada, o suficiente para fazê-lo sangrar. Merecidamente, diga-se. Bateu apenas com o concurso das mãos fortes e o corpo compacto, nada de lançar mão de seus objetos cortantes, utensílios de trabalho, senão seria um desastre completo. Tinha senso de medida o Filé.

Apenas irrompeu sobre o homem, pondo-o por terra, à calçada em frente aos Balbi e socou-lhe a cara e as vísceras até desarmá-lo da barra de ferro e estrangulá-lo suavemente com ela, tão suavemente quanto se consegue ser possesso. Filé estava possesso. Esmurrou, bateu, sangrou, levantou e foi aplaudido. Eu o aplaudi para sempre. Um homem forte que defende os fracos, este o mundo mítico que me legou o açougueiro Filé. Sempre sorridente, sempre conversador e amável com as senhoras donas de casa, porém decidido quando se tratava de defender os fracos. A cadela veio a falecer ao fim daquela tarde, mas fora defendida, mais que vingada. Isso o que importa nesta vida. Sempre.

Data deste episódio meu amor aos vira-latas, não obstante a preferência pelo convívio com os felinos. Ensinada por meus pais. Cachorro é Flamengo. Gato é Vasco. Deve ser isso. Cachorro é Globo. Gato é JB. Cachorro é Globo de novo. Gato é Tupi. Cachorro é Mundial. Gato é Nacional. Cachorro é novela. Gato é jogo. Cachorro é Big-boy. Gato é Almir. Cachorro é Caetano. Gato é Torquato. Cachorro, americano. Gato, russo. Cachorro é Cola-Cola. Gato é guaraná. Cachorro é Brahma. Gato, Antarctica. Um mundo mais simples, aquele da minha infância, enfim...

Mas, cachorro vira-lata eu sempre gostei. Friburgo sempre foi uma cidade com muitos cães (e, também, cheia de cachorros!). No mês de agosto, era comum temermos - os moleques na rua - os cães raivosos que vagavam em bandos numerosos, de doze a quatorze na matilha. Ser mordido por um cão raivoso - coisa que meu irmão do meio fora quando pequeno - era um temor muito grande por conta da injeção, a agulha da vacina etc., aquilo me apavorava só de pensar. E os cães estavam por toda parte, em agosto, soltos nas ruas.

Vira-lata não era em absoluto sinônimo de mansidão como nos desenhos animados do Walt Disney. Havia um tipo específico de vira-lata que corria atrás dos carros, nos tempos em que os carros ainda tinham estribos onde podíamos pegar carona e enfrentar com os pés os seus dentes escancarados e o focinho úmido, pingando. Eram divertidos! Mas, assustavam. Certa vez, pulei na cacunda de um roceiro que passava por minha rua, guarda-chuva ao alto das costas e chapéu de feltro à cabeça, fugindo de dois cachorros que escaparam do quintal de uma casa e me deram uma corrida, mas, aqueles dois idiotas não era vira-latas...

Até hoje se podem observá-los pelas ruas de Friburgo e estou convencido de que os vira-latas humanizam as cidades, assim como os pombos e os pardais. O modo como nos relacionamos com estas espécies urbanas, onde se podem contar também os gatos de telhado, vira-latas autênticos, bem como os sapos em determinadas zonas da cidade, à beira-rio; todas essas espécies nos ajudam a reviver e respeitar nossa própria animalidade. São mais felizes as cidades que contam com seu vira-latas e a eles podem somar porcos, galos, patos, pintos, galinhas, pássaros e tudo mais de que somos igualmente originários e pertinentes e do que, por vezes, a cultura nos quer afastar como se negar a natureza fosse a vocação inata da sociedade. Não o é.

Assusto-me infantilmente sempre que algum candidato à prefeito anuncia que perseguirá os cães e cercará as praças. O nazismo é uma atitude persistente em certos indivíduos bem-intencionados, porém, estúpidos quanto à importância dos viralatas em nossas vidas e cidades. São eles que nos permitem identificar os covardes e os corajosos, os defensores dos fracos e os arrogantes de coração, os justos e os cruéis, são justamente os viralatas, solitários ou em bandos, quem nos ensinam a lição de desapego essencial a saborear os grandes prazeres da vida, como, por exemplo, lançar-se ao rés do sol das calçadas para ali brincar com outros dois companheiros por horas a fio, apenas rosnando e mordendo sem qualquer periculosidade, não obstante erros aconteçam. Eu daria tudo para ter de volta as manhãs iluminadas da minha infância quando podia, à moda dos viralatas, lançar-me às calçadas com meus companheiros para jogar búlica ou soltar pipa ou andar de bicicleta, brincar de pique, correr, sorrir sem pensar... aquela vida em contato estreito com os meus sentidos é o que reencontro pelas ruas da cidade diante de um bando de viralatas que ceva a fêmea no cio.

O viralata é portanto o fraco, o despossuído. Mais tarde, Charles Chaplin me fez entender de modo terno a condição do viralata social, esse que a maioria de nós despreza, muito embora seja a maioria de viralatas maiores ou menores. Um viralata social é alguém que não entrega a rapadura, isto é, não perde nunca a alegria de viver, não se deixa dominar pelo pessimismo intelectual dos cínicos nem cultiva a fatuidade dos sonhos de glória, quer apenas desfrutar a felicidade possível, que é relativamente pouca e satisfatória a um tempo, mas, sem levar demasiadamente a sério as próprias, risíveis ambições. Carlito sabia como ninguém fritar uma sola de sapato para o almoço e arrematá-la com cebola ao jantar, sempre com alguma classe. Estilo é tudo. Os gatos também ensinam algo a respeito: não se precisa passar os dias a sorrir para ser simpático e nem é assim que funciona a empatia entre os seres.

Os cães humanizam as cidades porque nos forçam à convivência com os diferentes de nós. Sem maiores diálogos. Entretanto, é possível aprender algo com eles: algo que tem a ver com tolerar aquilo com o que não nos identificamos, do mesmo modo que precisamos aprender a tolerar aqueles que pensam diferentemente de nós e querem exterminar viralatas e cercar praças. Ora precisamos ser Carlito. Mas, tem hora, meu camarada, que é preciso ser Filé…


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