24 de janeiro de 2024 às 16:00
O beijo da vida
Chego à maturidade - que Drummond chamava madureza, para mim curso supletivo para adultos como minha mãe - de modo surpreendentemente estranho, como estranho se me parece muito do que vejo e sinto a esta quadra da vida, onde sou levado a reavaliar boa parte dos meus sonhos, a maioria das ilusões, e deter os olhos fundos da velhice que avança sobre a máscara da face em alguns pontos essenciais à linha do horizonte. Mais exatamente aqueles que contemplam minhas responsabilidades afetivas e escolhas éticas, de onde se origina uma saudável alegria de viver, pois posso olhar para o meu dia a dia e entrever ali, nas engrenagens pouco sutis do quotidiano, certa dose de cooperação à existência comum que divido com outrem. Isto é legal, reforça o caixa da auto-estima, muito embora esteja longe de ser um cara superavitário neste particular.

De qualquer modo, chego à estação da maturidade com o menino pela mão, à plataforma. Estou ali, ao meu lado, com os cabelos de sol da infância e um sorriso permanece a iluminar nos lábios, senão a ingenuidade, filha da tragédia, a inocência ao menos, neta da fé. Não desisti de mim. Vamos juntos. O homem que sou e o garoto que imaginou o mundo como um lugar não de todo hostil. Acho que ele tinha alguma razão de fundo nisso e eu prefiro persistir na busca de um princípio que unifique todas as glórias a encontrar explicações particulares para o fracasso do homem. Mormente eu que não ando atrás nem de glória nem de fracasso. Quero o beijo da vida e é só.

Os ossos estão ressentidos, também a musculatura, muitas das dores antigas de minha alma - vencidas hoje pela lucidez da meia-idade - já se transferem aos interstícios do corpo, talvez para não me deixar esquecer de quem fui e o quanto de mim desperdicei. Muito que bem, aceito a reprimenda. A humildade é uma sandália de dedo que se calça do meio da vida ao seu final, estou pronto para partir a qualquer momento - e do que me adiantaria não estar, não é mesmo? -, não obstante o persistente desejo de prorrogação que persegue o jogador ao fim da partida quando o resultado não o agrada.

Não me dou por velho, não é isso, mas é que a juventude é carburada a montanhas de sonhos e ilusões que já não junto aos fundos de meu quintal. Mesmo o que faço - e como amo tudo o que faço! - já se desrevestiu da suma importância de outrora. Hoje, à beira da lira dos cinqüentanos, tudo que me ocorre é ser capaz de olhar o outro nos olhos e ler ali a cor de sua alma. O beijo da vida. A língua do amor. Teu nome é silêncio.



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