25 de janeiro de 2024 às 16:00
Pequena suite do medo universal
A primeira grande sacanagem do ser humano com outro ser humano foi opor a ideia de Deus à libido, está lá no Genesis, um dos mais remotos registros da espécie preservados até os dias atuais.
A segunda foi a invenção da culpa, que veio substituir (e amenizar) o remorso, sentimento legítimo e autêntico que já traz em seu cerne o autocastigo como gesto de reparação, ação reparadora, física e concreta, ao passo que a culpa (amenidade do poder judaico-cristão) esforça-se por estabelecer a autopunição a partir de uma passividade subjetiva que dialoga muito bem com a força de inércia que governa esse planeta (bonito, sim, mas fisicamente complicado, diga-se, as condições de temperatura e pressão aqui não nos favorecem o exercício pleno da felicidade).
E a terceira grande sacanagem foi a teoria do fim do mundo, um juízo final, um apocalipse de todas as verdades ocultas, uma interpretação da justiça divina como genocídio, massacre, destruição em massa, hecatombe e o catso (você acha que os mortos da região serrana do Rio de Janeiro e do nordeste do Japão eram todos culpados perante um Criador misericordioso, porém, incapaz do perdão?). Há controvérsias.
Pois bem, cada uma dessas três grandes (e eficientes) sacanagens de nós outros contra nós mesmos tem, independentemente da intenção doutrinária implicada em cada uma delas, um resultado visível de submissão, de subjugação, de dominação de um homem por outro, de escravidão, enfim.
Porque esse - a escravidão - é o grande dilema que tentamos a duras penas resolver desde a invenção de nós mesmos, seja por mutação genética evolutiva, seja por interação com seres extra-terrestres, no sentido de seres de fora da realidade física da Terra, em que dimensão isso for, como o próprio Genesis por mais de uma vez insiste em sugerir.
O fato é que, a partir de determinado ponto do processo histórico - a descoberta dos cereais em geral, pode ser? - uma quantidade cada vez maior de homens começa a ficar desconfortável com o recurso da escravidão como modus vivendi ET operandi.
Explode nas supercordas de seu íntimo a percepção de que aquilo (a escravização), além de impor sofrimentos inimagináveis, não era exatamente necessário à vida social e, a partir dessa interrogação inicial, longamente, lentamente, parte da espécie caminha para rever essa questão e abolir em nós tal princípio.
Não é fácil, não é simples, pois a escravidão possui grandes adeptos entre nós, inclusive parte expressiva dos próprios escravos, devido ao componente sadomasoquista incrustado em nossa libido desde tempos imemoriais, primeiro devido à privação imposta pelas intempéries da sobrevivência nos primórdios da civilização, e depois pela própria prática da escravidão, cuja essência é a de um prazer sexual perverso que só se satisfaz na dor e na privação da ternura. O que origina uma economia pujante, naturalmente (afinal, a vida em sua essência perde de todo o sentido para uma gente entregue à sodomização de si mesma e ao fetichismo).
Daí, as três grandes sacanagens para aterrorizar as pessoas em geral e os nascidos escravos em particular, incutindo-lhes, sistematicamente, o medo e a impotência, fornecendo-lhes um ensinamento para a carestia de afeto e a privação da imaginação, onde o gozo da vida se foi, aos poucos e crescentemente, sendo associado a figuras lascivas e sombrias, que, paradoxalmente, jamais poderiam, por sua própria concepção, estar associadas ao prazer físico, à alegria e ao amor - que são, em suma, com o trabalho, as únicas e verdadeiras fontes da vida.
Afasta-se Deus do amor intrínseco na troca sexual, submetendo o ato às excrescências de uma compreensão sadomasoquista do gozo; culpa-se com a passividade subjetiva uma multidão inerte diante de suas responsabilidades (intransferíveis) para com a própria felicidade e dos demais ao seu derredor; e completa-se esta pequena suíte do medo universal com o prenúncio, sempre iminente, sempre anunciado de véspera, de um mundo (este nosso) prestes a se acabar, de modo que, no dizer de Zé Ramalho, o admirável gado novo (e velho) nada mais faça do que patinhar em um chão de desesperanças. E medo. Muito medo.
Cabe ao indivíduo desconstruir os mecanismos emocionais dessas minas terrestres e superar-se a si na invenção do outro.
Enquanto o outro, como preconizou o Cristo, não for para nós como nós mesmos, não superaremos o dilema da escravidão nem venceremos a nós próprios no que há de pior em nosso íntimo, que é uma percepção egoísta e burra do triunfo sobre a vida (ideia sumamente ridícula, porém, forte e muito bem implantada no chip da maioria de nós, inclusive neste que lhe fala, apesar de todos os esforços de reeducação...).
A questão que por vezes nos escapa é que a recusa em ver o outro como a nós mesmos simplesmente indica o quanto mal nos vemos e/ou sabemos de nós, razão primeira de tantos preconceitos e juízos de valor equivocados (mas, que resultam em violência e destruição quotidianas).
Então, uma vez mais, retornamos à questão socrática (incontornável) do autoconhecimento: só conseguimos superar a escravidão a partir do conhecimento de quem somos e de tudo de que somos capazes de fazer e sentir a partir de nossas incríveis capacidades humanas, que são luminosas como os campos de plantações de trigo e grandiosas como a música dos mestres.
Aí, essas três grandes sacanagens perpetradas por nós outros contra nós mesmos tendem a perder força, sentido e desaparecer... para a infelicidade de muitos, é certo, pois a Terra, de um jeito ou de outro, cumpre gradativamente o seu destino de ser o paraíso do filho do Homem.