08 de março de 2024 às 16:00
Inconsciência (II parte)
Portanto, creio, o amor confunde-se com a verdade, quando não é ele mesmo o impulso construtor - ou, se preferimos, desvelador - da verdade.
Refiro-me, por óbvio, à verdade dos sentimentos velada por nossa inconsciência quanto à origem remota de nossos atos, escolhas, motivações e decisões.
O trânsito de todas essas variáveis, que se multiplicam ao infinito de indivíduo para indivíduo, a gerações, parece-me, só pode ser percebido e mesmo ordenado (precariamente) ao nível do quotidiano por uma intervenção da consciência. Nessa medida, a consciência é fundamental e essencial, mesmo que sempre parcial e fragmentária em sua iluminação do objeto de realidade a que reporta a subjetividade humana.
Assim, a história de uma família só pode ser modificada do destino que a molda em determinada forma a partir do momento que se instaura uma consciência efetiva sobre as motivações de origem que guardam o comportamento de seus membros. Por isso, a história, mais que ciência do passado, é uma ferramenta essencial do presente.
Não se trata de investigação fácil, até porque os sistemas familiares avaliam constantemente a capacidade de seus membros para acessar em maior ou menor grau de desvelamento seus próprios conteúdos, bem como - presumo - as condições que tenham para dar conta das tarefas implícitas ao desvelamento. A felicidade não é grátis, frise-se!
O que quero dizer - mais simplesmente - é que não se chega a esta verdade íntima por veleidade intelectual e nem mesmo por curiosidade - virtude que lhe é superior, insuficiente, ainda, porém, para os confrontos decorrentes de tal desvelamento.
Tocar a alma de sua família não há de ser nunca ato gratuito nem franqueado ao incauto aventureiro, arrivista de coração que a tudo contempla com a indiferença cínica dos desenraizados. Jamais isto acontece. Os tipos assim vão pela vida, empedernidos de seu convencimento, e o sistema familiar muito simplesmente os ignora por sua total - ou quase total - inconsciência, não obstante possam ser, eventualmente, indivíduos integrados e úteis à vida familiar e social, apenas que ineptos ou despreparados para os trabalhos hercúleos e ciclópicos que demanda o contato com esta verdade mais íntima de qualquer clã.
E não necessariamente porque ali jazem monstruosidades - em geral, jazem, é preciso admitir também - mas porque lidar com tais conteúdos exige-nos graus elevados de respeito, compaixão e ausência de juízos de valor acerca da história individual de cada membro do sistema, em uma escala que envolve, no mínimo, três gerações, o que exige, também, um desnudar-se de pré-conceitos e pré-julgamentos para o qual a maioria de nós não está em absoluto preparada.
Em primeiro lugar porque optamos, historicamente, por enterrar e ignorar a nossa própria história familiar, grande parte dela, para muitos de nós, afogada em segredos, soterrada sobre escondimentos e diversionismos vários ou mais simplesmente esquecida por absoluta falta de finalidade ao contexto das relações sociais como as entende o nosso atual modo de vida - de uma total falta de modos, diria!
Depois, em decorrência desta opção pelo esquecimento, grassa, então, o despreparo dos indivíduos para lidar com os fantasmas que os assombram e visitam, quando não insistem deliberadamente em agir por eles, por intermédio e através deles é o que quero dizer. Diria, com certo grau de temeridade, que é quando se acelera o caos da irracionalidade que hoje nos atravessa como sociedade global contemporânea.
Indivíduos aparentemente sem história - isto é, deslembrados dela - vêm remetendo a humanidade aos primórdios senis de sua barbárie originária, apenas com sofisticado aparato técnico de despistamento, capaz de pôr em suas mãos algo assim como uma espécie de tacape digital, se é que me faço entender, ou uma borduna quântica com a qual arremessar-nos de volta à noite dos tempos, uma vida de espelho e pente para selvagens engravatados e plugados no vácuo.
O advento da matrix é a derrota do humano, algo em marcha na sociedade contemporânea porque, simplesmente, os rapazes a quem entregaram os botões e os chipes não têm a quem legar suas próprias inquietações. Zumbis yuppies e solitários.
Há uma estranha coincidência - pode reparar - entre jovens executivos e jovens deliqüentes em operação no sistema global - na matrix. Essa turma não vai casar nem constituir família nem cuidar dos pais. Portanto, eles estão se lixando para os sistemas familiares, que são a base simbólica da organização social do homem. E são estes rapazes, regados a cocaína, hiperconsumo e sexo improdutivo, quem diariamente dão as cartas nas mesas de câmbio de todo o mundo e nos covis da economia do tráfico, já há uma geração, pelo menos - muito embora seja forçoso admitir que seus antecessores tinham ao menos desprezo por suas vítimas. Eles, nem isso.
Os recursos materiais do planeta estão inteiramente sob o controle da mentalidade que governa estes jovens executivos e delinqüentes. Eles não se importam em morrer jovens nem em matar, se preciso, este é um jogo banal, tudo o que desejam é apenas se divertir com seus jogos - sendo que alguns desses jogos incluem aglomerados indistintos de algo que antigamente chamávamos seres humanos. Hoje, não sei que nome - ou código - levam em seu jargão de conquistadores do nada.
Não há como enfrentá-los em seu campo, em face de sua abundância de recursos, e, por outro lado, o restante da massa parece suficientemente desenergizado para fazer frente aos apelos constantes de hiperconsumo que essa turma lança a título de distrair seus quadros estatísticos até a hora da partida deste mundo.
Aqui ficamos no impasse entre predicar no deserto ou ser apanhado na próxima curva do caminho.
A força avassaladora desta inconsciência parece irrefreável, uma tsunami de insânia, violenta, brutal, apenas que é inútil se dar conta disso uma vez que estes moleques simplesmente puseram o mundo no piloto automático e estão fazendo sexo na cabine ao lado com aeromoças histéricas e peitudas, que vez por outra lhes dão uma salutar e alvissareira dedada no olho do cu.
Enfim, ligue-se o foda-se e não se fala mais nisso. Fui!