09 de março de 2024 às 16:00
O inimigo de si mesmo
O fato de que existimos é bastante mais frágil do que desejaríamos do ponto de vista de nossa própria existência. Basta uma noite nos tempos para que nossas vidas esfumem, tragadas por uma tempestade de areia ou mesmo o bailar selvagem da ventania. Basta que sopre um vento. Ou caia a chuva. E tudo passa, sem vestígio nem sentido. Como um músculo pulsátil, o universo respira seu próprio fim, inelutável, antes, necessário.

É estranha a forma como a vida vai moldando os destinos, de um modo tal que mesmo as maiores decepções se parecem adequadas às possibilidades. Tudo, absolutamente tudo, só se justifica em definitivo por sua própria observação retrospecta, isto empurra meu pensamento aos contrafortes do completo fatalismo, como se algo de oriental fluísse por meu sangue, o que explica certo abatimento persistente.

Por mais que façamos, excetuadas talvez as façanhas monumentais reservadas a alguns poucos homens, os mais de nós estamos de alguma forma presos a qualquer coisa que ignoramos, não obstante nos reja e dirija ao encontro daquilo que devemos ser. Nossa morte é apenas o ponto final de uma breve carta a ser queimada na lareira.

Esse mundo inteiro que carregamos sozinhos na mente, prefigurado segundo o sujeito que somos em nossas vidas - alguns, como eu, coadjuvantes de si mesmos em seu esforço de protagonizar o próprio destino -, é mais o mundo de nossas expectativas e recusas do que propriamente alguma coisa a que se possa atribuir uma existência ou, pelo menos, um sentido autônomo do que deriva a confortável noção de realidade. Não há realidade, o que há são esquizofrenias dominantes, fortes o bastante, por seu pulso primal, a impor um padrão relativamente geral de convívio, em torno do que se fecham acordos razoáveis para que os mais e os menos atentos construam uma linguagem comum com o que cruzar a ponte da vida, entre os extremos de sua nulidade essencial - o nada de onde emergimos para o nada a que nos destinamos.

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Diariamente, movo-me em torno de objetivos que não me consumam nem dão a conhecer plenamente o perfil de meu rosto e esta parece ser, em si, a minha destinação: caminhar oculto por minha própria sombra, adiado, disperso, postergado, interrompido, sem que de meu interior a mão de mim mesmo se levante para a defesa minha, não por objetivos fúteis tais como o meu prazer ou a minha felicidade, mas, antes, pela consumação daquilo que sou em um ato único de amor, justificativa única para estarmos aqui.

Não, não sei o que seja este amor que pressuponho com a mente, muito mais do que com o coração partido, por onde se perdem energias colossais, a vitalidade do corpo não pode auferir seus ganhos em uma paisagem assim, de interiores cindidos: solidão que no outro jamais se completa.

Ainda assim, parece, estou fadado a prosseguir, até o desenlace, a vasculhar, em meio a torrentes de palavras amontoadas na noite, não o sentido possível para uma existência que se esvai, perdida, inócua, mas, antes, o sentimento mínimo com que enfrentar meu próprio desencontro.

Não há aliados possíveis para o homem inimigo de si mesmo, cujo sorriso escande o medo da derrota e a voz parece partir-se em mil dissonâncias.

O curioso de tudo isso é que não há fuga nem saída possível do próprio labirinto, resta girar em círculos e quadrados, atordoar-se com a esperança de uma falha qualquer no sistema de erros para sonhar o alívio de uma redenção improvável - que céus nos perdoariam se nós mesmos não soubermos fazê-lo, que benção a aplacar a dor e a ira se não sabe o coração ouvir os seus apelos?

Estamos, pois, fadados a ir ao encontro de nós mesmos, por mais que não nos reconheçamos ao espelho ou nos resultados de uma vida inteira. Ao fim e ao cabo, é o que somos: o que deixamos de ser mais o que fomos, patética somatória de equívocos, erros e sonhos, é assustador que se dê à luz principalmente a face do que abominamos, fraqueza, impotência, descuido, perdas, sucessivas perdas...

Há uma perda no meio do caminho, o meio do caminho é uma perda. Viver é algo que simplesmente interrompe-se.
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