15 de março de 2024 às 16:00
Para uma fenomenologia da palavra (I)
Será preciso continuar acreditando no poder da palavra para ser um escritor. Eu, porém, não sou um escritor - ora bolas! - no sentido de que não sustento, financeiramente, a minha atividade. Então, pergunto-me, que poder teriam estas palavras aqui colocadas senão a força de sua própria desilusão? E digo desilusão em um sentido afirmativo: do homem que olha para si em busca de verdade para os seus atos e sentimentos, como se a interpretação dos mesmos pudesse melhorá-los um pouco em relação ao que de fato o são.
Sempre tive comigo a convicção de que os conflitos interiores do indivíduo, no âmago de sua subjetividade, precisam ser enunciados de algomodo para que alcancem novo patamar de expressão - se para cima ou para baixo, não sei, mas esta convicção firmou-se com os anos e talvez explique minha adesão pessoal ao exercício da escrita. O que significa, portanto, reconhecer o poder da palavra como enunciação. Então, creio - e há algo de positivista nisso, admita-se! -, tudo depende em certa medida de uma enunciação que toque os pontos essenciais, a corda mais tensa, da questão que se deseja abordar e o seu esclarecimento se daria, digamos, de modo palpável e visível aos nossos olhos e mãos. Haveria, assim, uma solução de continuidade em nível de realidade para o impasse vivido - este que eternamente aguarda sua elucidação ou, por outras palavras, sua enunciação. Algo como anunciar e revelar a um tempo. Sim, porque competiria também à palavra, deste ponto de vista, trazer a lume o que quer que se guarde em sombras, senão submetendo o oculto às dores indevassáveis da luz, ao menos acariciando-lhe com o conforto de uma doce penumbra, onde possa ser visto e considerado sem os horrores das trevas - que são propriamente o horror do que não se quer ver ou ser visto.
Este raciocínio parece desenvolver-se com razoável sensatez - a mim mesmo, ao menos! - até o ponto em que o confronto com os resultados de minha vida pessoal. Vejo estabelecer-se aos meus olhos, então, um divórcio profundo entre palavra e ação que por pouco - muito pouco! - não me leva ao paroxismo e me custa a coerência mínima a manter-me vivo. E, eventualmente, pensante. Em certa medida, minhas ações (ou a falta delas!) desjustificam minhas palavras - e vice-versa - num exercício contínuo e profundo de ruptura entre estes dois, digamos, ambientes do ser. O ser como ente que se move por todos os labirintos da existência, objetiva e subjetiva, em busca de sua realização e do que a loucura é apenas mais uma linguagem entre tantas para sua auto-interpretação e auto-expressão. Suponho que o homem seja, por excelência, um animal metalinguístico, cujos olhos se voltam continuamente sobre si próprio, o que lhe faculta uma leitura da própria trajetória enquanto ela ainda se desenvolve, não de todo consumada - do que decorreria a eventual importância de seu pensamento como linguagem para si mesmo.
Entretanto, o que percebo é que, na maior parte dos casos, como indivíduos e como sociedade, vamos marcados por determinações históricas - ou surpra-históricas - que remetem nossas existências a um contexto de possibilidades pré-determinadas a que não temos como reagir ou mudar, senão muito superficialmente, por mais que esta afirmação contrarie tudo em que desejo ardorosamente acreditar.
É muito fácil para qualquer falante - de língua portuguesa ou não - meter o pau nos resultados objetivos de qualquer vida pessoal, mesmo que só a conheça em suas elementares minúcias, eu mesmo não me poupo pelas opções que fiz e me parecem, ao fim e ao cabo, abstrusas, estapafúrdias etc. Mas, o que dizer, por outro lado, da falta de opções de nações inteiras, imensos contingentes humanos imersos em condições de vida que por si só desautorizam - antecipadamente - de duas a três gerações seguintes de seus descendentes, submetidos que estão a determinações objetivas e subjetivas que simplesmente anulam quaisquer esforços por sua auto-realização?
Há um pessimismo latente em meu pensamento que se expandiria a partir do centro de meu próprio fracasso como pessoa, é possível identificar e eu mesmo me apresso por reconhecê-lo, a fim de minorar os efeitos nocivos de meu insucesso sobre a prosa que ofereço para reflexão. De qualquer modo, desconsiderado todo o meu ceticismo em face de uma realidade que se pode constatar a olhos vistos - em qualquer direção que se olhe - o que nos resta senão a aceitação de uma trama espessa, muito acima e muito abaixo de nós, que nos empurra a todos, cada qual a seu lugar determinado, sem que muitas vezes consigamos entender o que aconteceu com a gente e porque chegamos a viver uma vida inteira em contradição com o que desejaríamos para nós e todos mais a quem somos capazes de amar, mesmo à luz de deformações típicas da subjetividade humana?
Eu, por exemplo, não tenho uma resposta satisfatória para o que fiz de mim. Acreditei no poder da palavra. Continuo acreditando! Senão, não estaria a derramá-las. No entanto, as coisas não aconteceram de um modo que possa considerar razoável. Não se trata de reduzir minhas responsabilidades diante do desfecho da minha vida, trata-se muito simplesmente de entender que as coisas não dependem só de mim e que há estímulos externos que somos capazes de produzir e outros, não.
O curioso - e já disse isso em outra oportunidade - é que o exercício do pensamento, seja como expressão artística ou esforço de reflexão, é sempre um ato relacional, de diálogo, e é profundamente contraditório que eu tenha cevado o mais fundo isolamento humano a partir, justamente, de uma intenção dialogal!
Minhas palavras não somaram aos meus contemporâneos, os que estiveram em contato mais ou menos estreito comigo, meus esforços não lhes pareceram nem válidos nem úteis e a minha falência como indivíduo tornou-se, sob muitos aspectos, uma bancarrota anunciada. Houve de minha parte uma falha de comunicação que em alguma medida explica o meu malogro e as objeções contumazes.
Sempre achei - e continuo achando - que um escritor deve valer exclusivamente pelo que escreve e o artista pela obra que realiza. Ora, se você como escritor e como artista não reúne as condições necessárias à sua expressão, não há realização possível e está, portanto, fadado ao desaparecimento. É o meu caso, o que produzo parece não fazer sentido ao meio em que transito e, portanto, ou eu mudaria de meio - ao que me recuso, seria o mesmo que migrar de planeta! - em busca de novas condições ou eu entendo o meu destino por desnecessário. Como homem algum pode ser necessário apenas a si mesmo, o que verifico é a desimportância da minha existência como aquilo que sou. É um fato.
De certa forma, sinto-me como aquele que, enterrado vivo, espera pacientemente esgotar-se o ar de sua agonia, enquanto a vida ainda pulsa inexplicável em sua veias. Quente. O silêncio é ensurdecedor. A solidão, atroz. Mas, curiosamente, há uma paz nesse esgotamento que resulta, talvez, de uma esperança - inadvertida - de que se possa ser salvo pelo gongo!
Mas, eu me pergunto, quem esticaria um barbante do badalo lá fora até o queixo de alguém cujas palavras não chegaram a fazer sentido?