18 de março de 2024 às 16:00
Ao fim do romance
Cada qual tem sua própria demanda de compreensão para dar conta das circunstâncias de sua vida, uns resolvem-se com menos, outros com mais. Alguns precisam que a situação se repita mil vezes aos seus olhos para que atentem à natureza de seus mecanismos, outros, ao contrário, com meia-dúzia de fatos são capazes de chegar a conclusões concisas acerca do que se passa e se dirigir a uma solução possível.
Ser lento ou lépido, nestes casos, implica, igualmente, em vantagens e desvantagens - para ficarmos em terreno que a sociedade do hiperconsumo diariamente rega e aduba, incita-nos, vantagens! vantagens!... -, todavia, sê-lo um ou outro não está propriamente ao alcance das mãos como o resultado final de uma preparação continuada ou treinamento. Nem mesmo de uma escolha.
A demanda de compreensão de cada um de nós em relação às nossas próprias vidas pessoais e à vida em geral é um processo complexo, sob certos aspectos, com vínculos históricos com a nossa própria cultura familiar e de nação, e não nos aparece nunca de modo claro e explícito senão naquele ponto em que - Nava explicava - a experiência mostra-se como os dois faróis de um carro voltados para trás na estrada.
Ou seja, a percepção do que precisamos para entender, de fato, esta ou aquela situação de nossas vidas só nos chega muito tardiamente, ao fim do romance, por assim dizer, quando já não nos restam muitas páginas adiante para propor, eventualmente, um novo final, no caso de discordarmos ou mesmo não desejarmos o que está colocado para o fecho de nossa própria história.
Os lépidos, como se sabe, redundam comumente afoitos. Açodados. Precipitados. Vertiginosos! Os lentos resultam lerdos, muita vez descansados. Acomodados. Conformistas. Mas, o fato é que a ninguém - seja lento ou lépido - o capítulo final da compreensão de si mesmo lhe é oferecido de ante-mão. Antes que se lhe reste muito pouco a fazer por sua própria história.
Porque, na verdade, nossa história está pronta apenas quando conseguimos pensar nela como tal, toda história é fato consumado. O difícil - e, por vezes, duro - é olharmos para algumas de nossas relações presentes e admitirmos, com clareza e isenção de sentimentos, que elas fazem parte de nosso passado, já são história.
É um olhar imprescindível, este, e que deve ser lançado em nome da própria saúde e da saúde de todos mais os envolvidos na mesma situação, para que não se materialize - uma vez mais - aquela afirmação gramsciana - comprovadíssima - que diagnostica o alto grau de morbidez implicado no intervalo entre o velho que morre e o novo que custa a nascer.
O século XX assistiu, ao nível dos indivíduos, a um festival de rompimentos, por vezes cruéis, traumáticos - alguns trágicos! -, em torno desta necessidade de mudança que é imposta pela dinâmica mesma das relações. E dos acontecimentos. Sejam eles internos, do ser, ou externos, ao nível do ambiente e seu entorno.
Boa parte dos melhores esforços empreendidos neste sentido estiveram comprometidos em comprometer os indivíduos com a busca do diálogo para a mais ampla solução de seus conflitos e, nas duas últimas décadas do mesmo simpático, famigerado século, lutou-se ainda mais para difundir a percepção de que as perdas são inevitáveis como parte mais que acessória de toda a nossa compreensão da natureza dos problemas em que vamos envolvidos.
Penso que amadurecemos com isso, com uma percepção adulta do sentido da perda, falta agora - no alvor do século XXI - generalizar a experiência e torná-la o mais ampla possível, pois isto reduzirá por certo os crimes passionais e as esquizofrenias decorrentes de um déficit crônico de diálogo entre as pessoas.
É, no mínimo, curioso que a experiência democrática esteja aí, como forma de governo, há duzentos anos, disponível como prática em número cada vez maior de localidades e nações ao longo do Ocidente, e as nossas relações pessoais estejam, ao contrário, marcadas por grande conteúdo autocrático e autoritário, sem que sejamos capazes de compreender o vínculo profundo que unifica ambas as vivências no interior das sociedades e à roda de seus indivíduos.
Entretanto, foi como disse à abertura, cada qual tem sua demanda própria de compreensão da realidade, seu ritmo próprio, e é no balanço dessas ondas que conjugam conteúdos pessoais e sociais que se vai amalgamando a época em que vivemos, marcados que somos à mão de ferro pelos traços de sua implacável fisionomia.
Esta época, agora, por exemplo, é estranha. Estranhíssima. Todas as condições estão dadas para que seja a melhor. E, no entanto, o que assistimos, como antigos, imóveis espectadores de tragédias, é a repetição patética de um velho, requentado script que conhecemos de cor. E nada acrescenta-nos. Senão repetição. E indiferença.