18 de abril de 2024 às 16:00
Impunidade e corrupção:
os males do Brasil são
A desigualdade e a competição estão na essência do ser humano como o entendemos e não é por outro motivo que ambas fundamentam o mais bem-sucedido modo de produção da história social do homem: o capitalismo, esta espécie de mundo selvagem do dinheiro.
Os princípios do lucro e da mais-valia aos quais estamos todos obrigados ao longo da vida, em maior ou menor grau de comprometimento com certa perversidade intrínseca à sua lógica, estão na base mesma de nossos relacionamentos sociais, aqui entendidos em sentido amplo, tal modo incluir, também, as relações no âmbito da família contemporânea - que duzentos anos de modo de produção capitalista fez por reduzir a unidades de consumo e, sua soma, a uma multidão compacta e indistinta de compradores ansiosos, do que se originaram a produção em massa e as sociedades de massas em que vamos encalacrados até o pescoço.
Por setenta anos de socialismo soviético grassou no mundo do século XX, especialmente entre intelectuais de esquerda e sindicalistas de todas as latitudes, a ilusão persistente de que a natureza humana pudesse ser reformada por decreto, no sentido de que um Estado centralizador e autoritário, em nome das massas proletárias, fosse capaz de restabelecer entre as pessoas a ele submetidas os princípios da igualdade e da solidariedade em que se fundam nossas melhores esperanças, do ponto de vista do espírito humano - este que se eleva acima de contingências e circunstâncias para vislumbrar a universalidade do direito à vida como bem inalienável e inato a todo ser vivente, inclusos bichos e árvores.
A realidade histórica desautorizou a ilusão, por suposto bem-intencionada dos socialistas, e devolveu-nos a nós, sobreviventes à queda do Muro de Berlim (1989), o dilema perene e milenar da dualidade do homem, que oscila entre o melhor e o pior de si mesmo no curso de sua existência.
Portanto, a reflexão que aqui se procura estruturar não comparte ilusões nem utopias, sem, contudo, abdicar dos mais altos predicados da esperança, que consistem, em suma, em permanecer acreditando na possibilidade de superação da miséria espiritual e material do homem. Quem não sonha não merece viver, já o disse o jornalista político Villas-Bôas Corrêa.
Temos motivos para ter esperanças, não obstante abundem as causas de nossas decepções, é certo. A consolidação da democracia liberal é um desses motivos, basta recordar - e a memória histórica é fator essencial à esperança - que há quatrocentos anos atrás a raça humana como um todo convivia, ainda, com a escravidão e outras mazelas e deformidades sociais, hoje amplamente superadas, algumas delas mesmo extintas. Não é pouca coisa, embora igualmente não nos sirva de consolo diante do muito ainda por ser feito.
Em maior ou menor grau, mais e mais pessoas nascem, hoje, na compreensão de que a existência da democracia burguesa como sistema político de relativa eficiência - ruim, como disse Churchill (1874-1965), porém, melhor do que todos os demais - está intimamente vinculada, mesmo dependente, da constituição de um império da lei, acima de tudo e todos, de caráter absolutamente universal. Ou seja, lei boa, que funciona, de fato, é aquela que vale igualmente para todos, o mais igualmente possível que as diferenças individuais e sociais aceitem como regra básica do convívio humano, essencial à paz social, à felicidade dos indivíduos e à prosperidade internacional dos povos.
Por outras palavras, sem democracia não há desenvolvimento duradouro de qualquer espécie, seja econômico ou social ou mesmo pessoal. Mais próspero e afirmativo da vontade de potência humana será o estado democrático capaz de erigir acima de si e de seus cidadãos o império absoluto da lei, esta que vale igualmente para todos - e, assim, nos permite experimentar senão a igualdade, a equanimidade, ao menos.
São pressupostos - o estado democrático de direito e, por óbvio, o império da lei - que se não podem, em hipótese alguma, resumir aos seus aspectos formais sempre que estiver em questão a paz social e o sistema de oportunidades por intermédio do qual os indivíduos, as famílias e os mais variados grupamentos sociais vão buscar, na arena quotidiana da vida comunitária, a realização de seus anseios, sonhos, desejos e expectativas.
O homem não é bom, como o imaginou o bom Rousseau (1712-1778), e nem mau, como o fazem supor os pessimistas da espécie. O homem, em verdade, não é nada, um vaso vazio, se tanto, mas, pode ser tudo e qualquer coisa - inclusive bom e mau - dependendo do nível de coesão e homogeneidade sociais a que esteja submetido em seu processo de formação e desenvolvimento como indivíduo, vale dizer, pessoa humana.
Quando obtemos níveis razoáveis de coesão e homogeneidade sociais - quem me ensinou isto foi o jurista e estudioso Paulo Mafort - para constituir o substrato cultural dos indivíduos, temos, então, a ocasião de vê-los florescer como em um jardim da diversidade humana, submetidos ao projeto paisagístico de suas culturas originais, onde encontrarão, por certo, espaço de vazão para suas singularidades ao tempo que vão compreender, em contrapartida, a necessidade imperativa de preservar os fundamentos da ordem existente para a sobrevivência mesma de si próprios bem como de suas descendência e coletividade próxima (a rua, o bairro, a cidade, o estado, o país, que é onde vivem os homens e não no mundo, essa abstração capitalista).
Esta visão de longo prazo da existência tem sido gradualmente abolida ao longo dos últimos séculos para o conjunto maior da humanidade, graças aos dispositivos imediatistas do sistema geral de consumo, que induz, brutalmente, ao individualismo predador e à perda integral do senso de solidariedade social, face ao avanço da miséria espiritual e material do homem mergulhado no mundo global da superabundância.
Podemos atribuir, portanto, sem susto sociológico, à dinâmica mesma do modo de produção capitalista a quebra, em escala mundial, dos níveis de coesão e homogeneidade sociais indispensáveis à reprodução de indivíduos aptos às responsabilidades de seu tempo (basta pensar no inepto Jorge W.C. Bush, coitado), do que decorre, por conseguinte, o crescente grau de desordem que se pode constatar, com as facilidades da evidência, em todo o amplo espectro da sociedade internacional contemporânea. Ninho de marfagafos.
Se o socialismo soviético ruiu pela impropriedade mesma de pretender reformar o homem por decreto a partir do Estado autoritário e centralizador, as democracias liberais em que se funda o modo de produção capitalista como ele opera na atualidade parecem implodir, lenta e desastrosamente, por conduzir as massas humanas ao pior de si mesmas, a saber, a desigualdade e a competição sem limites nem regras - o que ameaça o nosso insipiente e pouco consolidado império da lei.