24 de abril de 2024 às 16:00
O amor é um boi de Parintins
É certo que o amor está na natureza, uma força cósmica tão regular como a da gravidade ou a eletromagnética ou as forças forte e fraca no interior do núcleo atômico, não há dúvida de que se manifesta também no reino animal, em especial, entre os animais de sangue quente - embora haja quem afirme que os répteis também amam, para o que torço um pouco o nariz, certas cobras peçonhentas que cruzaram o meu caminho, deitando nele a goma de seu rancor contra a vida, não me pareceram nem um pouco amorosas, ao fim e ao cabo, mas...
Para o homem, contudo, (mesmo estas cobras peçonhentas que mencionei) o amor é um ato de cultura, resultado de uma longa cadeia de valores agregados a um instinto básico e, assim sendo, passível, portanto, de educação e aprendizado, muito embora não nos termos curriculares em que nos habituamos a reduzir o conhecimento (por certa impossibilidade intransponível de transmiti-lo in totum). Amar se aprende. Como qualquer disciplina, demanda vocação, habilidade, intimidade inata, mas nenhuma dessas coisas supera a intenção de vir a aprender, a atenção e a disciplina que tal intenção suscita.
Pensa-se, por vezes, de modo muito estreito acerca do amor, mais ainda em seu confinamento obtuso em torno da paixão segundo o romantismo, isto é, mais como doença que iluminação, mais obsessão que entrega, mais possessão que livre-arbítrio, mais dependência que intimidade (aliás, uma das coisas mais saborosas do amor!).
O amor, contudo, está longe e muito longe de tudo isso, ele não é um sistema estratégico para a sobrevivência de casais profissionais, é antes o improviso criativo de símios desguarnecidos diante dos céus, que se dão conta do imenso desfrute que é penetrar a singularidade alheia e com ela compartir uma alegria essencial: a alegria de viver, esta que logo se extingue, mas tem o dom de se mostrar longa e eterna enquanto dura, esta que não se pode restringir e espalha-se, em ondas, distribuindo generosamente suas benesses; permitindo, aos poucos, discernir, um a um, os diferentes e múltiplos tipos de afeto que se produz pela vida afora, porque é isso: o amor é uma energia e, como tal, se especializa e diferencia (ao modo mesmo da divisão celular) e é possível compreendê-lo em uma vastidão de encontros, diários ou não, onde acontece com a força que lhe é própria, a alegria que lhe intrínseca.
Mas, é um aprendizado! Não está dado. Como cultura, é um intrincado e complexo constructo, onde, geralmente, principiamos pelos erros mais óbvios: a edulcoração, o egoísmo, a idolatria, a idiotia, a possessividade, o ciúme e tudo mais que faz a festa (e a fortuna) da pior e mais bem-sucedida literatura romântica (aquela que a propósito de lidar com sentimentos humanos, deforma-os em função de objetivos ficcionais pouco satisfatórios, para dizer o mínimo).
Perdemos tanto tempo neste emaranhado de erros óbvios, que se reportam todos à noite escura de nossa inconsciência, que às vezes não sobra quase nada para uma verdadeira compreensão deste fenômeno essencial da existência, que é, em suma, a compreensão do que há de insubstituível na singularidade e na presença do outro.
No mundo do afeto somos todos insubstituíveis, é preciso se conformar com isso.
Cada encontro é, em si, um mundo completo que abraçamos ou renunciamos, que acolhemos ou rejeitamos, mas que não podemos deixar de considerar como único para o resto de nossas vidas, mesmo que nos escape, mesmo que não logremos construí-lo nem desfrutá-lo, a este mundo completo, representado pela presença do outro, um outro único e singular, repito, insubstituível; e que ficará para sempre como uma possibilidade que nos foi colocada para exame e avaliação, e à qual reagimos com base no que sabíamos de nós até o momento daquele encontro; sabendo, por outro lado, que a função vital de todo encontro é, em suma, modificar-nos ao ponto de ficarmos cada vez mais parecidos conosco mesmo, naquilo que temos de essencial e que se reporta ao âmago da pessoa que somos, e que está sempre por ser mais completa e ampla enquanto vivemos, isto é, enquanto não desistimos de viver e aprender.
Uma vida sexual satisfatória não nos pode prover este conhecimento essencial e íntimo que emana do ato (desinteressado) de amor, aquele que se faz ao sol, sem amanhã nem prestações de conta, não obstante possa durar por uma (longa) vida inteira. A energia puramente sexual não nos remete ao repouso amoroso, onde o espírito contempla a si na imensidão do outro que o inunda com sua gratuidade e sua beleza, fruto de uma admiração sem explicações. A mais furiosa das trepadas não pode competir em gratificação com o mais manso dos amores; é certo que a carne guarda seus encantos e prazeres, mas mesmo ambos só podem ser obtidos na plena abstração do que se toca (naquele ato) e que não é necessariamente real, de um ponto de vista físico, mas o é, e muito, de um ponto de vista afetivo, emocional e que se pode comprovar pela simples gratificação de que nos vemos plenos, sem que nada de extraordinário, nenhum malabarismo, precise acontecer.
Do contrário, é a fornicação nervosa de sempre, sempre que o amor não nos apanha e recolhe, sempre que não logramos entender como a mágica funciona e tentamos os nossos velhos truques de macacos prestidigitadores, punheteiros da boceta alheia, festival, orgia, suruba... Com efeito, não há mesmo excessos no amor nem contenção, o que há é uma justa medida que se ajusta do modo mais natural (dois carinhos que se procuram, como ensina Drummond), por obra da mais pura gratuidade.
Falta-nos, creio, educação sentimental. Tenho insistido neste ponto há anos. Amar se aprende amando (de novo o mestre!), mas, sobretudo, querendo aprender a amar, com humildade em gol diante de tamanha complexidade, disponível a seus erros e equívocos, sem culpas, assumindo todas as responsabilidades que lhe são pertinentes e sabendo, de ante-mão, que não há nada garantido, o amor é caprichoso.