10 de maio de 2024 às 16:00
O Partido dos Trabalhadores
e o cânone democrático
O Partido dos Trabalhadores, com seu grande, incomensurável know-how de masturbação sociológica, onde as questões se discutem à exaustão, mesmo para além dela, muita vez de forma inconciliável entre cada uma das inúmeras tendências políticas organizadas que compõem seu fragmentário tecido partidário, fora a gigantesca demanda social a ser devidamente respondida, tem, ainda, ao meu ver, um outro serviço, igualmente hercúleo e ciclópico, a prestar ao país e ao povo brasileiro em geral ao longo do próximo mandato presidencial – que é habituar-nos ao cânone democrático e às infindáveis, mesmo insuportáveis, porém necessárias e indispensáveis, discussões por onde passa a elevação do nível de consciência democrática dos cidadãos e não-cidadãos deste país continental.

O Brasil, apesar das inúmeras lições que vem dando ao mundo de democracia institucional e representativa – para surpresa mesma do irmão do Norte, ex-campeão no ranking, cujo lençol da glória foi manchado na Flórida, no último pleito presidencial –, é em si uma sociedade de baixo perfil democrático.

De um ponto de vista orgânico, nos interstícios da vida quotidiana, seja na esfera privada ou na pública, em se tratando de questões de Estado ou de querelas entre vizinhos, nós os brasileiros ainda estamos milhas siderais de compreender a prática democrática como o mais alto legado do espírito humano ao abismo incontornável da coexistência.

Somos essencialmente autoritários em nossos relacionamentos mútuos, no microcosmo do quotidiano, a "chave de galão", expressão corrente no chão do Brasil, não só é aplicada com freqüência como reverenciada e cantada em prosa e verso pelos botequins afora como uma saudável e pujante demonstração de força e capacidade de impor uma tal ou qual posição de mando. Todo mundo sabe disso, todo mundo, em algum momento de suas vidas, pratica isso e, pior, todo mundo um pouco se orgulha disso, desse eivar as relações interpessoais das famosas "carteiradas" e da célebre frase esmiuçada por Roberto Da Matta, "você sabe com quem está falando?"

No fundo, este é um país de capos: de capitães de indústria que julgam ociosos políticos sem cargo (como o fez Antônio Ermírio de Moraes ao dizer que Luiz Inácio não trabalha há trinta anos), de desembargadores que se permitem estacionar seus veículos oficiais em locais proibidos, de artistas que passam à frente em filas de restaurantes com seu prestígio entre o inoportuno e o tacanho, de coronéis que compram votos em praça pública na convicção da morosidade e da inoperância do judiciário para deter-lhes o crime a tempo de não serem diplomados pela justiça eleitoral; e de uma miríade de pequenas, sistemáticas falcatruas que ferem mortalmente a boa-fé do brasileiro pobre em relação não só às estruturas de nossas instituições, mas, pior, quanto ao nosso desempenho nos relacionamentos humanos dentro das estruturas hierárquicas que regulam a vida social.

Ainda somos e seremos por muito tempo o país da impunidade, da corrupção, da justiça para pobres, da morosidade judicial para ricos que beneficia o infrator, do policial e do juiz acumpliciados com o crime organizado, do poder legislativo que opera em causa própria nas barbas de uma opinião pública inerte diante de desmandos acintosos e latrocínios a céu aberto; tudo isso ainda o seremos por muitos e muitos anos que um mandato mero de quatro anos – mesmo investido de tamanhas esperança e expectativa, como o é o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – não tem condições de reverter. Pesam contra nós cinco séculos de aviltamento dos direitos do indivíduo face ao poder do Estado e das oligarquias à sua roda, não há milagres possíveis na esfera da vida pública.

Mas, o caminho das pedras está dado. E o Partido dos Trabalhadores, forjado em vinte anos de escaramuças e combates internos no âmbito da democracia possível entre os homens – pois também lá, no PT, já se aplicaram "chaves de galão", como foi o caso da coalizão forçada com Antony Garotinho para as eleições de governador no Rio de Janeiro, em 2000 – tem uma valiosa contribuição a oferecer-nos a todos os brasileiros se souber trazer a público e à luz dos fatos que vão permear a vida política do país nos próximos anos esta experiência essencial com a democracia, e que está, invariavelmente, calcada no livre pensamento e no livre debate de idéias. À exaustão, que seja, vez que somos ibéricos, subjetivos e pouco práticos. Madrugadas adentro, se preciso, já que somos ruins de consenso e decididamente propensos à dissensão, muita vez apenas para marcar posição e estabelecer a fronteira das vaidades como o limite possível do que estamos dispostos a aceitar.

Seja como for, entendo que o PT deverá pressionar a mídia nacional a compreender e expor em suas páginas, por exemplo, que os deputados de sua bancada não necessariamente estão obrigados a raciocinar em bloco e em consonância, sempre, com a equipe de governo e que nem por isso estamos menos aptos ao debate e à pugna democrática, quando e sempre, também, os grandes objetivos da nação permanecerem acima de questões pessoais e de outros interesses que também jogam seu peso legítimo nas disputas.

Generalizar esta experiência petista ao nível das assembléias comunitárias dos municípios com menos de vinte mil habitantes, onde não entra nem o Estatuto das Cidades, será, talvez, a mais significativa e perene contribuição desta primeira passagem do Partido dos Trabalhadores pelo poder, e que pode, efetivamente, mudar a face do país no que ela tem de cicatrizes e traços do mais profundo autoritarismo. Um bom cabelo, aqui, é quase um olho azul, por exemplo. No Brasil, discretamente, o rico empurra dois ou três termos em língua estrangeira em uma conversação com os demais a título de uma comunicação subliminar ao interlocutor de sua superioridade social, mormente racial também. O preto tem que ser praticamente um semi-deus para sofrer uma discriminação menor um pouquinho, incólume porém não passa. Não ter dinheiro é como não ter dignidade.

A única maneira de tratar esses males da alma e da cultura, minorando-os no possível e sem a ilusão de eliminá-los, é com o coquetel forte da democracia. Genérica, além de tudo! Democracia sem marcas nem indutores. Democracia plena, praticada à luz do dia, que fine os conchavos (como aquele que entronizou Tancredo Neves no poder da República) e fortaleça as negociações. Democracia sem capos e suas doações oportunas, sem donos de partido e suas listas montadas no espúrio da noite. Democracia em todos os níveis da vida pública e privada, capaz de abolir a invenção nefasta das massas de manobra, tão bem acalentada pelas esquerdas brasileiras ao longo de sua história de alianças conjunturais com a direita mais raivosa e reacionária (desde Vargas, na Segunda Guerra, que entregou Olga Benário ao ódio nazista até a cooptação dos quadros de cultura do PCB pelas Organizações Globo, durante a ditadura militar, por exemplo).

Não é missão fácil a que aqui se descortina para o Partido dos Trabalhadores, seus setecentos mil militantes em todo o país terão trabalho de sobra para conter as línguas flamejantes de nosso temperamento ibérico-irresponsável diante do poder que nos avilta e submete, bem como terão trabalho aos montes para organizar os pleitos de gigantescas demandas sociais reprimidas, e muito bem reprimidas, que se arrastam a séculos pelas ruas e casas do Brasil, especialmente do Brasil pobre e das classes médias urbanas que ensaiam um salto de consciência em seus direitos civis, ora expresso, com a força de cinqüenta milhões de votos conferidos a um pobre que passou fome, que aprendeu a conviver e dialogar com a elite intelectual da rua Maria Antônia e que agora se vê a braços com a possibilidade, generosa, de emprestar ao mundo um exemplo vivo do que pode ser o cânone democrático posto em prática em uma nação da periferia do capitalismo global.

Um desafio e tanto para o novo país dos homens de barba. Sem as cavernas de Tora Bora, bem entendido! Tudo aqui é luz.
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