14 de maio de 2024 às 16:00
A quintessência do Quintana
O que gosto no Quintana é que ele é imperfeito, antiapolíneo, dionisíaco, celebra a vida e a morte como coisas sem maiores solenidades, malgrado sua substancial importância. É culto sem erudição ostentada, é simples sem cultivar a ignorância - hábito tão caro às camadas populares no Brasil -, é lírico ao extremo sem nunca incorrer na ingenuidade, profundo sem ser pedante... enfim, para dizer de vez e confessar de chofre a inveja, Quintana é tudo que gostaria de ser, mas, sem sê-lo, senão como inspiração. Comove-me a sua simplicidade e o modo descosido como alcança a glória de seus melhores versos e pensamentos ("Os fatos são apenas um aspecto secundário da realidade"). Quintana é a quintessência do que é humano e comum em todos nós, representa-nos em face de seus conterrâneos gaúchos, todavia sem ser por eles contido em seus cacoetes, trejeitos e idiossincrasias. Pode ser degustado nas Arábias ou Cingapura ou em qualquer lugar onde uma alma cultive em si a ternura e a deseje extensiva ao território alheio. Graças a Deus não entrou para a ABL, ânsia fátua de glória, pouparam-no o vexame do fardão, ridículo impensável à delicadeza, grotesca inutileza entre besouros, literaturas de carapaça. Quintana faz do poema, graça - mais que pena -, sentimento mais que sofrimento, não obstante eu sinta que seu espírito sofre ao cheiro de enxofre de seus companheiros, os homenzinhos caçadores de passarinhos, e dos seus amores, os passarinheiros, os marinheiros, os delatores, os fuleiros, os fulanos encostados, corpos aposentados, cunhãs e mateiros. Matreiro, Quintana finge que sonha para não agredir com a realidade sutil que inventa os cultores do cimento, a realidade concreta do dinheiro. Sua poesia ganha a praça, a rua, o coreto, não se esconde entre bibliotecas e livreiros, é uma poesia livre, por vezes rasteira, que é por onde nos colhe a todos a chuva que cai do céu. Assim, desarmado e banido, Quintana pastoreia nuvens, segue iluminando o poente, dorme quente e de sapatos sobre os sonhos de muita gente. Amo Quintana, docemente.
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