18 de maio de 2024 às 16:00
Para uma fenomenologia da palavra (III)
A enunciação referida, porém, cabe frisar, não é um descarrego, não é um vomitar sobre o outro as suas prioridades, nem tampouco um jato de confissão, açodado e culpado, do qual se deseja livrar o mais breve em busca de alívio. Longe de tudo isso, esta enunciação é a procura da palavra mais certa e justa para o momento - o que, por muitas vezes, redunda em monumental silêncio. Um silêncio, porém, contrito e cônscio de ambas as necessidades: a do próprio silêncio em si e a da enunciação almejada.

Porque, é preciso admitir, este aqui é o mundo da ação, mais que da palavra. Se nossas palavras não agem, elas estão sendo cuspidas, então, fora do mundo, fora da realidade. É o que abate o poder da escrita, vez que não se consuma como ato. Esta a impotência brutal que ronda, diariamente, o escritor. Palavras ao vento. Ditas apenas em nome de si mesmo, de sua aflição fundamental como ser da escrita. Não basta. Não realiza. E aí não adianta de nada a gente escrever escrever escrever. Ou mesmo dizer ao brados.

As palavras, como dardos, como flexas, buscam o alvo, precisam buscar o alvo - pois tudo nesta vida quer apenas consumar-se no repouso e não seria diferente com o que há de ser dito. É uma ciência. Uma pacência. Uma arte. Exige treino. Preparação. Não é à-toa que a sabedoria popular proclama o silêncio de ouro.

Não basta um impulso, uma necessidade pessoal para justificar o que se vai dizer ou colocar como letra em um relacionamento. É preciso saber ouvir o coração, auscultá-lo, perscrutá-lo e dar tempo para que o drama envolvido em cada mínima palavra que pronunciamos venha a lume em seu esplendor. É quando a palavra quebra o curso da ação e instaura um novo momento, renovado, possivelmente mais inteiro e ainda mais incompleto do que o anterior, devido à amplitude que sua enunciação anuncia e projeta. Novas tarefas. Novas responsabilidades. Afazeres até então impensáveis. Tudo é muito surpreeendente e alvissareiro quando nos submetemos às vicissitudes das palavras que precisam ser ditas e que, por razões diversas e insondáveis, escolhem a nós para pronunciá-las no rubor, muita vez, de nossa própria ignorância acerca de todo o mundo que vai sendo dito por nossa boca, incrédula.

Esses assuntos são muito insólitos para ser tratados à luz do racionalismo vigente e a insanidade galopante nas relações contemporâneas; de qualquer modo, vão aqui estas notas a título de contribuição para uma fenomenologia da palavra como motor e/ou manche/volante/leme da conduta humana em tráfego pesado.

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