20 de maio de 2024 às 16:00
Paralelepipedamente falando
Às quintas-feiras pela manhã, segundo o rodízio familiar, estou escalado para ficar com minha caçula, até deixá-la em seguida na escola, por volta de uma hora da tarde, e seguir para o resto do dia.
Essas manhãs misturam prazer e ansiedade em doses variadas, mas, acabam sendo sempre produtivas para nosso relacionamento. Beneficio-me de seu encanto e ela parece gostar igualmente da minha companhia.
O dever de Português de hoje trazia uma história-em-quadrinhos a ser transcrita em redação, se é que me faço entender. Vou tentar melhorar essa explicação: a professora carimbou lá uma seqüência de ações em uma folha de exercícios e pediu que ela fosse descrita em palavras.
A ação era simples: uma menina anda de esqueite e encontra com um coleguinha que chupa um picolé. Ambos, para variar, preferem o que é do outro e isto impulsiona uma troca. Em seguida, o garoto sai se equilibrando no esqueite e a guria passa a lamber o picolé, felizes e risonhos. E pronto, esta era toda a história.
Carolina, minha caçula, sete para oito anos de idade, não teve qualquer dificuldade com a redação, exercício de que gosta e do qual desembaraça-se sempre com certa facilidade. E rapidez.
Nosso pequeno embate matinal deu-se ao me perguntar como se escrevia esqueite. Bem, hesitei - quiçá no esforço inconsciente de parecer a mim mesmo um intelectual -, depende, disse. Em inglês é skate e em Português é esqueite.
Ela torceu o nariz para a segunda forma que lhe apresentei - soletrando ambas. Empacou na linha de sua folha de exercício, resistente à minha recomendação de que, sempre que possível, aportuguesasse as palavras estrangeiras de uso corrente em nossa língua viva das ruas, pois, expliquei, os Estados Unidos estão comprometidos com guerras e armas, isso não é bom para o mundo, portanto, o melhor que fazemos é resistir a eles e isso começa pela língua, filha.
Oito, sete anos é idade indulgente a idiossincrasias e outras hipérboles do comportamento, ela simplesmente ignorou meu discurso anti-americano, alegou que a palavra skate era mais curta - e tacou lá, skate, na sua redação de Português.
Lembrei-me da primeira vez que dei de cara com a palavra flirt, foi em um romance do Machado de Assis, e guardei a esperança de que o tempo e uma consciência continuada acerca da construção de nossa auto-estima como povo acabe por aportuguesar esqueite, internete, escaner e tudo mais da invasão americana que nos confunde e enfraquece, assim como acabou acontecendo com flerte - mas, é preciso dar tempo ao tempo e respeitar mesmo a fragilidade de indivíduos como Carolina, diante da máquina de macaqueação que são a maior parte de nossas redes abertas e fechadas de televisão e o conjunto quase total dos demais meios de comunicação de massas neste país.
Certa vez, a pianista Fernanda Canaud contou-me em um almoço que na Colômbia, país em guerra civil há quarenta anos, as rádios só tocam música estrangeira vertida para o espanhol. Roberto Carlos, inclusive. Fez-me recordar a informação do poeta Affonso Romano de SantAnna acerca dos festivais de poesia que lotam estádios naquela mesma e sofrida nação latino-americana. Penso que seria melhor para a economia, a cultura e o povo brasileiros macaquear os colombianos, neste particular.
Enquanto isto não acontece, se é que acontece um dia, sigo respeitando a individualidade de minha pequena, bombardeada por todos os lados, ao escrever skate em inglês por ser mais curto. Agora, alguém me responda, por que insistimos tanto nessa idéia anglo-saxã de ser mais curtos?
Paralelepipedamente falando, não entendo inconstitucionalissimamente o porquê!