22 de maio de 2024 às 16:00
Para uma fenomenologia da palavra (II)
Não! Essa imagem do enterrado vivo não interessa à minha subjetividade. A esperança não pertence ao meu espólio de expetctativas. Meu patrimônio resume-se ao meu próprio esgotamento. A oferta é esta - esta aqui - e não outra. Ninguém pode dar o que não tem. E o que tenho para trocar é tão somente isto que ofereço aqui, nesse texto e em outros. Muitos outros! Nem mais nem menos. Os aspectos que remetem às minhas falhas de comunicação devem ser desconsiderados, por ambíguos - há muito mais em jogo, sempre, em qualquer relação, do que as falhas evidentes de uma das partes. Não se fala mais nisso. A questão continua sendo mesmo a da enunciação. Alguém que se comprometeu a dizer alguma coisa terá de fazê-lo - a que preço for, mesmo o de sua desautorização pessoal, é o caso.

Cada vez mais recuso comparações ou nexo causal. O fato é que as coisas são em si e comportam todas as explicações possíveis - quando queremos explicá-las - e nenhuma explicação razoável - se temos alguma indisposição para tanto. É assim. Simples.

Ainda assim, creio, há coisas que precisam ser ditas e, ditas, desencadeiam fatos em cadeia que levam a modificações profundas, sob a paisagem imutável da existência. Pois tudo que de fato podemos mudar neste mundo é o modo como o abordamos com o nosso sentimento de amor à verdade - é o que me parece, pelo menos. E isto pode provocar pequenas alterações, imperceptíveis a olho nu e altamente significativas para o contexto de nossas vidas. Microvidas.

Então, o segredo permanece em saber dizer o que deve ser dito. E dizê-lo é uma arte. Não pode ser apreendida em manuais de leitura, embora muita gente boa tenha escrito a respeito ao longo do tempo. Parte dos escritores dedica-se a desvelar, mínima e suavemente, esta questão, pois ela é essencial para que qualquer de nós suporte seu próprio fardo com alguma grandeza e não destrua por completo as chances daqueles que lhe são subjacentes em muitos sentidos.

Falo, portanto, de enunciação. Há algo de nós a ser dito àqueles com quem convivemos que pode pôr a nossa vida de cabeça para cima no meio da barafunda geral em que vamos atolados. Mas, o quê? Não é tão fácil determinar. Não é tão fácil saber o que é. Mas, que graça teria se o fosse? E a vida - indagariam os práticos - precisa ter graça? Claro que sim! A graça é a única coisa que justifica a vida.

Essa procura pela palavra a ser enunciada estabelece o diálogo. Porque, por óbvio, se existe algo a ser dito, existe, por outro lado, algo que se precisa ouvir. Se existe o que se ver, existe o que ser visto. Esta situação relacional repousa na base da angústia, que é, em suma, a pergunta que ainda não se formulou.

Suportar a angústia, portanto, sublimá-la, por vezes, ruminá-la, menos do que as doenças possíveis daí decorrentes, o que se vislumbra - penso - é o amadurecimento dessas questões íntimas que temos a vida para responder.

Mas, cujas respostas - pode apostar - projetam-se à sombra das gerações futuras. E esta seria, em princípio, a mais legítima e gratificante compensação por seu esforço pessoal em face da grande trama coletiva. Projetar uma resposta que equacione, ao menos, as suas próprias questões pessoais. De frente para o crime. De cara com a vida.

E aí, vai encarar?

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