23 de maio de 2024 às 16:00
Espaço público de cultura
Penso que a primeira coisa a caracterizar um espaço público de cultura deva ser sua acessibilidade. Em dois sentidos: quanto à sua localização geográfica e quanto às suas taxas de ocupação.

Do ponto de vista geográfico, a administração pública deve se preocupar em estabelecê-los nos mais diferentes pontos do território sob sua responsabilidade direta e resistir ao apelo de fazê-lo em regiões ocupadas majoritariamente por segmentos das elites e classes médias, pelo motivo simples de que os bairros e áreas pobres não representam por si atrativos suficientes para investimentos privados de tal ordem - o que obriga o estado a responder por seu incremento.

Do ponto de vista da ocupação, há a exigência de manter-se ativo tais espaços nos limites de sua capacidade instalada, tal modo contemplar os segmentos empenhados na produção artística que não disponham de recursos para locação de instalações adequadas ao desenvolvimento de seus projetos.

Esta acessibilidade desejável do espaço público de cultura, portanto, há que estabelecer uma equação funcional entre seu aspecto geográfico e a demanda de sua existência por parte dos segmentos produtores de cultura, no sentido de que não basta, por exemplo, plantar um teatro em meio a uma comunidade da periferia, sem localizar aquela onde exista uma atividade do gênero em intensidade que a justifique, por catalizadora.

Cumpridos estes dois aspectos de acessibilidade, é preciso introduzir um terceiro, que lhe é essencial: a democratização do acesso ao público. O establecimento de uma política específica de preços para o valor do ingresso que abra estes espaços ao consumo das diferentes camadas da população que se interessam por produtos culturais variados. Não faz qualquer sentido que um espaço cultural mantido com o dinheiro do contribuinte compita em condições de igualdade de preços de ingresso com a iniciativa privada - onde os custos, em tese, estão por ser ressarcidos a partir da própria bilheteria.

A universalização dos serviços deve constituir o norte das iniciativas públicas em quaisquer setores de atuação, não havendo motivos para que se separe a cultura deste contexto, ao contrário. Se não houver uma clara diferenciação de preços de ingressos em espaços públicos de cultura o que se verifica é a apropriação de recursos públicos por grupos privados - origem das políticas de favorecimento dos laços de compadrio que há cinqüenta anos ou mais orientam as diretrizes das burocracias de cultura que dominam a máquina do estado no Brasil.

Não compete ao estado - como hoje se verifica - financiar a produção artística, mas sim o acesso da população ao trabalho dos criadores, por intermédio de contratos de cessão que contemplem significativas reduções no custo do ingresso, vez que espaços mantidos com recursos provenientes do contribuinte, a saber, de caráter público e universal.

Este fato de que os pagadores de impostos são os credores destes espaços públicos de cultura tem sido relegado ao esquecimento por seu gestores no Brasil, de tal forma que o público paga duas vezes para assistir a um único espetáculo: ao contribuir com seus impostos e ao adquirir o ingresso a preços de mercado.

É de nenhuma importância discutir o tipo de programação das casas públicas de espetáculo no Brasil - se deveriam dedicar-se à vanguarda experimental ou às realizações notadamente comerciais - enquanto não se discute e regulamenta a ocupação destes espaços segundo critérios de universalização de seus serviços.

Por um lado, o público merece tratamento diferenciado pelo fato de que são espaços sob a gestão do estado; e por outro, os produtores culturais como um todo precisam de critérios universais para concorrer à sua ocupação.

Com relação ao público, a questão se resolve mais facilmente por intermédio de uma política diferenciada de preços de ingresso. Contudo, em relação à ocupação, o problema mostra-se mais complexo: como universalizar as regras, neste caso?

Se não é papel do estado - e não o é - investir no produto cultural como objeto de lucro, resta-lhe tão somente a meta da universalização dos serviços oferecidos e da democratização dos espaços de cultura sob sua administração. Até aqui, esta meta não foi sequer discutida com fins programáticos, tamanha a resistência dos grupos no controle das máquinas públicas em repensar o privilégio como fonte inesgotável de injustiças. Conseqüentemente, de desordem e violência social.

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Irresponsabilidade igual é praticada na distribuição de patrocínios por autarquias governamentais e empresas públicas brasileiras que, na ausência de políticas públicas em cultura, orientam-se por critérios exclusivos de marqueting, chegando ao descalabro mesmo de financiar produtos culturais de origem estrangeira com conseqüente evasão de divisas (remessas de direitos autorais ao exterior). Pura jabuticaba, isto é, só existe no Brasil!

Enquanto não houver uma discussão de natureza estratégica quanto ao papel da cultura no contexto do desenvolvimento social e econômico do país, a atividade artística continuará sendo tratada como adorno de vaidades pessoais, sujeita a benesses ou idiossincrasias autocráticas de grupos à frente deste ou aquele aparelho de estado - em diferentes níveis de articulação -, sem que a socidade propriamente usufrua de toda a imensa riqueza que lhe está reservada a partir de uma efetiva estruturação do setor de produção cultural - aqui entendido como a mais ampla manifestação da diversidade antropológica de um povo.

Em um país com as características do Brasil é impossível, ao meu ver, dissociar o setor de cultura do setor turístico, bem como do papel pedagógico da arte em ambientes que demandam transformação social a partir de uma elevação do nível de consciência da população - em torno de seus próprios recursos e possbilidades.

Sem uma visão estratégica da função cultural é impossível estabelecer políticas públicas consistentes e duradouras. Enquanto isso, vai o espaço público a serviço de interesses privados. Sempre.



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