29 de maio de 2024 às 16:00
Inconsciência (I parte)
Quando falamos em curso do destino, creio, estamos falando em inconsciência. Inconsciência das motivações atávicas, de foro instintual, mas também histórico, vez que o gesto humano grava-se filogeneticamente como memória transmitida, que impulsionam - no sentido mesmo de impulso, pulsão - escolhas e decisões acertadas no escuro da noite dos tempos, que dorme debruçada sobre nós, como indivíduos.
O indivíduo é, com efeito, uma invenção recente da mente e da alma humanas. E está, por conseguinte, ainda bastante próximo de todas as indistinções e informidades que o remetem ao universo arquetípico da espécie, onde lutam as forças mais poderosas do ser. Este que é sem estar ou mesmo ter sido, mas cuja expressão - como símbolo encarnado, por assim dizer - só se realiza plenamente por obra da consciência, esta balsa de junco no mar do esquecimento. Balsa, porém, tão poderosa quanto tais forças, por sua plasticidade, sensibilidade e agilidade em dobrar-se às bocas de ondas vorazes e imensas que tentam, em vão, apagar suas sombra e presença à superfície da amplidão oceânica. Tal balsa sobrevive de modo sempre surpreendente à sua promessa de destruição e ruína.
Até aqui, no curso da história humana, muitos são os corações e mentes de homens e mulheres que, como indivíduos persistentes, resistem ao que parece inevitável: sucumbir à devassidão informe das águas. Ao contrário, a elas opõem a vela frágil e bela da razão e aos ventos põem-nos ao seu serviço, sempre que alcançam a compreensão de que, na verdade, menos do que uma luta insana no interior do ser, estas forças em conflito clamam pelo amor que lhes foi em alguma instância prometido como a energia primordial da existência; e que por algum motivo continuamente nos escapa, ao tempo que igualmente nos renova como atores-personagens e um pouco também como dramaturgos deste drama eterno.
O indivíduo busca para si, sobretudo, a condição de autor de sua história. Não poderá fazê-lo, todavia, sem compreender o seu próprio destino como destino de conjunto, interseção coletiva de quantidades de desejos e motivações que em tudo o excedem e extrapolam como consciência individual.
A percepção desta realidade extra-sensorial, que flutua acima de chistes e cacoetes do quotidiano, aliada a estes aparatos de proteção (que são os chistes e cacoetes) à radiação das evidências; é esta percepção, difícil e estranha, o que nos permite seguir na construção da individualidade - ou individuação, para nos aproximarmos aqui do conceito junguiano, jovial do ser - diante de um mundo primitivo de motivações ancestrais, que sobre nós se guarda sob a capa, justamente, dos atos de nossa inconsciência.
Temos agido cada vez mais com quantidades maiores e assustadoras de inconsciência, na modernidade. Em parte porque, talvez, a instrumentalização da razão como técnica de apropriação do real mostra-se, por seus pífios resultados humanos, um fracasso quase completo - senão completo - e em parte, também, porque esta racionalidade degenerativa posta em prática no interior do aparelho produtivo das sociedades contemporâneas, como as concebe a apropriação massiva de capitais e de recursos naturais, não tem sido capaz - talvez, nunca o seja - de dar conta das demandas íntimas dos indivíduos por amor e compaixão. Ou seja, a mesma energia primordial de que se ressentem as poderosas forças íntimas do ser, são subtraídas e negadas igualmente pelas estruturas sociais que condicionam a permanência da espécie sobre o planeta que dilapida, impiedosamente. Em uma existência de assumida anorexia sentimental.
Este vazio colossal preenche-se com dívidas em cartões de crédito, drogas em demasia, sexo improdutivo e, por fim, jogos de dinheiro e de guerra onde se sacrificam os pequenos - as crianças, as mulheres, os pobres, as minorias, enfim - em nome de uma barbárie espiritual que alimenta com sangue a nossa fome implacável de amor.
Naturalmente, sem satisfazê-la, por óbvio.
Vamos assim.