30 de maio de 2024 às 16:00
O invasor
Pegamos para assistir, minha mulher e eu, o filme do Beto Brant com as melhores recomendações da Márcia, a nossa videolocadora. O videolocador é um mutante contemporâneo do quase extinto livreiro que antigamente nos recomendava este ou aquele lançamento ou raridade existente nas altas estantes de seu estabelecimento, espécie de capela da cultura e do conhecimento, aos poucos substituída pelas casas de aluguel de filmes.
E ainda, neste caso, estamos diante de um fenômeno de relacionamento que não se pode esperar dos grandes conglomerados internacionais no gênero. Há uma diferença fundamental quando estou no Rio e pego meus vídeos na Blockbuster, por exemplo, e quando o faço na loja da Márcia e do Guinga, em Friburgo (RJ), onde eles mesmos - os donos - se desdobram entre o balcão e as sugestões à clientela. Que neles confiam como Drummond [1902-1987] confiava em dona Vanna, da Livraria Leonardo Da Vinci, aquele templo de títulos no subsolo do centro do Rio. Confiança que não se quebra sequer na discórdia. Natural, por vezes.
O filme começa bem, intrigante. Muito violento. Moralmente falando. Dois sócios de uma construtora resolvem eliminar o terceiro. Os desempenhos dos protagonistas, como de hábito na arte dramática brasileira, são excelentes. O Brasil produz com regularidade jogadores de futebol e atores de excepcional nível, sem crise de continuidade ao longo de sucessivas gerações.
O nó - para mim - começa mesmo no desenvolvimento do roteiro do ponto de vista da complexidade de elementos manipulados na sua elaboração. Fiquei com a sensação de que algo nos escapa a nós, os escritores, no que refere à profundidade psicológica e social do drama humano experimentado no Brasil.
Ou seriam as nossas personagens mesmas e suas personalidades parcas de grandeza histórica e conteúdo existencial que nos condenariam sempre ao relato relativamente superficial - para não dizer francamente ingênuo e pueril - do que há por contar a respeito do que se passa nesta terra, ao longo de sua história e de seu quotidiano?
Defender a segunda hipótese seria advogar em causa própria e de meus pares históricos e contemporâneos. De qualquer modo, penso que a questão é válida e merece o interesse sobretudo dos contadores de história, intérpretes da alma brasileira - empenhados que estamos em decifrar e traduzir, mesmo que de modo avulso e desorganizado, como é da natureza da cultura viva, os códigos de acesso de nossa conduta como povo e como nação.
O invasor me pareceu nivelar seus criadores aos policiais corruptos coadjuvantes e aos assassinos que protagonizam a ação, sem o menor constrangimento nesta identificação. Ao contrário. Todos ali desfrutam a mesma lógica, são cúmplices. A sensação que tive é de que os realizadores compartilham da mesma indiferença e razão cínica dos personagens que os leva a todos a experimentar o pior de si mesmos com certo orgulho originário de uma convicção firme de que a vida deixou de valer a pena.
O que, convenhamos, por mais que a pequena burguesia detenha o monopólio da interpretação existencial, está longe - léguas siderais! - de corresponder à realidade. E mesmo a pequena burguesia comporta variações em torno do mesmo tema, vale frisar.
Afinal, eu me pergunto, exemplos de que o homem é um projeto moral condenado ao fracasso abundam por toda parte, esquina e canto, mas, será que vale a pena contar uma história onde prevalece - sem contraponto - o pior de nós, nosso cinismo, nossa frivolidade, nossa puerilidade, nossa fraqueza? Prefiro Os matadores, do mesmo Brant, onde o Brasil recende no suor de medo dos assassinos de aluguel em seu instante de humanidade.
Não se trata ali, em O invasor, do pessimismo essencial que guia o melhor do racionalismo do Ocidente, bem dizer desde o Iluminismo. Parece-me mais a sedução fácil do mundo das aparências: um casamento que termina sem qualquer discussão, um pai assassino sem sombra de remorso, uma órfã de pai e mãe assassinados sem luto ou algo equivalente, e um homem arrependido apresentado como vítima indefesa de sua fragilidade psicológica. E o mais intrigante: um assassinato cuja função não se explica suficientemente, cujos resultados obtidos com ação de tal comprometimento não chegam a evidenciar suas vantagens, seus verdadeiros objetivos e intenção.
Em suma, um festival de escórias morais edulcoradas por movimentos frenéticos de câmara e outras trucagens típicas a serviço do caos. Passeios na noite neon.
Muito embora a história prenuncie uma situação potencialmente surpreeendente - interessantíssima, repito -, seu desenvolvimento apresenta-nos personagens sem justificativa para figurar em qualquer história que valha a pena ser vista.
De quem será a culpa: das personagens colhidas à flor da água de si mesmas ou dos autores brasileiros que não conseguem efetivamente atingir altas profundidades no oceano da dramaturgia, dentro do contexto da indústria do entretenimento?
Parece que, neste ponto, só mesmo a Petrobras mostra-se qualificada para a tarefa de descer às regiões abissais e de lá voltar com o ouro negro de seu supremo objetivo.
Literariamente falando, somos rasos. Não nos penetramos suficientemente, apesar de toda a sodomia contumaz. Algo nos escapa.