07 de junho de 2024 às 16:00
O ruminante exercício
Escrevo para saber porque escrevo e escrevo já há tanto tempo, sem qualquer justificativa plausível, senão um chamado interior - longínquo, profundo - que creio mesmo, e cada vez mais, não passe a escrita de um método, pessoal e empírico, de perscrutar o inescrutável e agarrar-me, por vezes, ao som das palavras quando ele explode ao silêncio da cabeça. Como uma forma de inventar algum sentido para a dádiva da vida, sem que tenha logrado a intenção da graça.
Não quero violar temas possíveis de romances futuros com a digressão ligeira dos dias de chuva que começam na cama, entre notações anteriores, revistas e acrescidas pelo pensamento em seu voleio, aspiral ascendente, em busca da palavra mais certa e justa, a saber, a palavra que expressa a imprecisão do sentimento e assim o explica sem ferir sua sensibilidade com a impostura do excessivamente dito.
Escrevo para saber porque escrevo. Perscrutar o inescrutável. Escutar o silêncio que se faz em mim. Rotundo. Abismal. Desesperador. Será a inveja que me move, a ilusão de nomeada que me alimenta? A ambição histórica, mais que terrena, de permanecer por algum tempinho a mais como o frágil registro para a contemplação póstera, enquanto agora, ansiosa, a carne azeda sem alcançar o êxtase do amor ou mesmo o frêmito voluptuoso da paixão? Porca miséria, não pode ser isso! Seria a estupidez suprema! Gastar-me em torno de algo cujo objetivo nem de longe se define e cujas respostas do mundo ao redor, estas sim, estão ainda muito mais longe de ser minimamente acolhedoras!
Escrevo como quem usa dentaduras. É isto! Quebraram-me os dentes, lá pelo início da adolescência, quando o mundo principia por nos sodomizar com suas definitivas regras e encantos, e dei de mão, então, nesta prótese do espírito a fim de oferecer ao outro o sorriso que não tinha. Uma forma de me mostrar, escondendo-me, por assim dizer. E vice-versa! Aliás, muito mais vice-versa do que gostaria, de fato. Creia não foram poucas as pessoas nesta vida e neste mundo que me viraram as costas a partir da minha escrita. Portanto, se o objetivo era agradar o outro - babau! -, o tiro saiu pela culatra!
Quisera escrever para agradar o outro! Ou mesmo a mim. Tudo seria infinitamente mais simples, creio, não que menos trabalhoso, escrever é sempre profundamente exaustivo, custoso, mas quando você tem um plano de vôo autorizado pela torre de comando e a destinação de um aeroporto qualquer ao fim do labirinto de nuvens e nada, as coisas ficam, digamos, um pouco mais fáceis, terrível mesmo é suportar a deriva, admiti-la inteira como o resultado, não de suas insuficiências e incompetências, apenas, mas, antes, do ser que você é e assim se expressa - pelo fracaso de si mesmo e um certo vagar a esmo em meio ao próprio destino, como se lhe pudesse dar um rolé, aplicar um desloque à força de suas mais puras intenções, o que, como se sabe, não é possível e nem faria sentido. Todo destino é para ser cumprido. E quanto às puras intenções, não constituem nem conteúdos pessoais presumidos nem objetivos a ser alcançados. O que nos resta, então, é a navegação de cabotagem - aérea ou marítima - em torno das pedras do caminho e de porto em porto, de cais em cais...
Escrevo para aplacar a minha dor, tentar um lugar ao sol dentro de mim para os desnumerados erros que cometi, honrá-los, compreendê-los, mesmo com todo o desperdício deles decorrente, mas, a vida é isso, um grande, colossal desperdício de energia...
Na verdade, em última instância, não escrevo para nada ou por nada. Nenhum objetivo posto à linha do horizonte. Tudo o que faço é expressar o pensamento, trazê-lo à tona, torneá-lo com o galope ao vento da caligrafia, deixá-lo à vista, palpável, impalpável a um tempo, sem maiores pretensões. É o que é. O que tinha de ser. Pistas e pegadas na floresta de grafite.
Se pudesse fugir ao meu destino, creio que não o faria, melhorá-lo, tenho tentado há anos, inutilmente, de resto, seja o que for que me levou pelos primeiros passos deste ofício, inveja, ilusão, o fato é que lhe sou imensamente grato pelo tanto que pude decifrar de mim mesmo e do outro a partir do ruminante exercício. Haja estômago! Intestinos. Coração...