12 de junho de 2024 às 16:00
O historiador dos leões

Ao vencedor, as batatas!
Ao perdedor, o jiló!

Reconheço, de cara, que esse texto nasce da minha permanente exclusão das concessões de patrocínio para a cultura pelo estado. Por isso, a pafráfrase do velho Machado - mulato adequado cuja fina ironia para com as elites cariocas de fins do século XIX acabou por seduzir toda a elite brasileira do século seguinte - é uma forma igualmente adequada, creio, para abrir esse texto. Tivesse os pleitos minimamente atendidos e possivelmente iria cuidar de meus projetinhos, sem mais gastar tempo com questões que de todo me excedem e patinam em terreno de precárias e bruxuleantes definições.

Contudo, mesmo o ressentimento - que não guardo - ou a frustração - que amacio - podem oferecer seu próprio ponto de vista a respeito da questão e contribuir para um debate que não se quer travar no Brasil: o quanto a política geral de concessão de patrocínios tem submetido os produtores culturais aos temas e formatos induzidos por agentes de todo estranhos à natureza da arte e da cultura.

A situação é complexa, exige bom-senso (matéria-prima escassa nos desvãos da modernidade) e pode resvalar, com facilidade, para o território inóspito da lamúria, onde vicejam queixas e lamentações. De qualquer forma - perdido por um, perdido por mil - vou-me arriscar sobre tais minas terrestres, pois me recordo agora de um ditado africano que diz que as caçadas serão sempre compreendidas do ponto de vista dos caçadores até que os leões tenham seus próprios historiadores. Seria a turma do jiló de papel e lápis na mão, ao sol da savana!

Em primeiro lugar, cabe aqui um corte por assim dizer epistemológico a fim de separar dessa discussão a iniciativa privada que, ao trocar seu apoio financeiro pela menção - ad nauseam! - de sua marca vinculada ao objeto de arte ou produto cultural que apóia, mais não faz que publicidade e marketing com base em isenções fiscais de uma legislação leniente, produzida por um estado que se exime do que não quer entender - a relação indissociável entre economia, cultura e desenvolvimento humano.

Portanto, a César o que é de César. Se a sociedade concede ao estado o direito de oferecer isenções fiscais a empresas privadas para a prática da auto-promoção e venda indireta de seus próprios produtos, o mais que nos cabe é registrar a aberração. Um legislador incapaz de discernir patrocínio de publicidade e marketing, das duas, uma: ou é um agente público mal intencionado ou está sumamente despreparado para o exercício de seu mandato. Existem outras alternativas piores, mas cabe poupar o leitor/eleitor de si mesmo, senão a antipatia transborda...

A mesma atitude, porém, já não procede quando o dinheiro é público. Aí, qualquer cidadão, caçador ou leão, tem o direito legítimo de opinar e manifestar seu ponto de vista, independentemente se sua dieta é majoritariamente de batatas ou de jilós.

O segundo corte a fazer refere à nebulosa questão da qualidade, valor inteiramente debilitado desde que a França se ajoelhou para pagar o boquete da lisonja à literatura esotérica. Portanto, não se discute aqui a qualidade intrínseca - de um ponto de vista artístico - nem dos trabalhos selecionados para o recebimento de patrocínio nem daqueles outros tantos preteridos em massa.

Que se exclua a questão da qualidade, por subjetiva, o mesmo já não se pode fazer no que refere à impessoalidade, pilar do estado democrático de direito, onde quer que ele funcione minimamente - como o são de suas natureza e vastas limitações.

Sociedade patrimonialista fundada às barras do estado, dele inteiramente dependente há cinco séculos para o financiamento da iniciativa privada e do pecúlio particular, o Brasil acostumou-se a fraudar a si mesmo - isto é, fraudar suas próprias chances de desenvolvimento estrutural - em nome do benefício imediato de suas elites, através da distribuição de sinecuras e cala-bocas para empreiteiras, indústrias, fazendas, bancos, mineradoras, sindicatos de trabalhadores, entidades patronais e tudo mais.

E os artistas e intelectuais brasileiros - tal e como os miseráveis que se encostam pelos empregos públicos das falidas prefeituras do nordeste, por absoluta falta de opção de trabalho e renda - parece renderem-se a essa política geral de patrocínio, com vezo explícito de cooptação, que promove a insuficiência e a dependência econômicas irreversíveis e, por conseguinte, a submissão artística e intelectual aos critérios do patrocinador. Seja ele quem for.

É positivo e operante que o estado direcione investimentos em que áreas forem. Conquanto assegure à escolha dos contemplados com seus recursos um grau de impessoalidade capaz de dissuadir aos preteridos da isenção dos critérios estabelecidos ou de lhes assegurar a contestação em juízo da escolha do agente do estado.

O modo como vem sendo feita a distribuição de recursos públicos para a área da cultura por empresas estatais não assegura nem uma coisa nem outra. Redunda em ação entre amigos, a despeito mesmo da lisura - aqui não questionada - dos agentes e seu critérios subjetivos - igualmente aceitos.

Nenhuma escolha no campo da cultura - no que refere especificamente a um objeto de arte, seja um quadro, um livro, um disco etc. - deixará de conter expressivo grau de subjetividade por parte do agente do estado encarregado de dirimir a escolha.

Portanto, à coletividade como um todo - reunidos caçadores e leões, comedores de batata e de jiló, em suas câmaras representativas e participativas - compete ajustar os critérios gerais dentro dos quais tais escolhas se dão, a fim de adequar a escolha subjetiva de cada julgador às políticas públicas para as artes e a cultura que desejamos como sociedade ver implementadas no país.

A lei geral das licitações - que rege a concorrência pública no âmbito das três esferas de governo - seria, a meu ver, um bom ponto de partida para se reforçar o exercício democrático da impessoalidade no trânsito de tais concessões. Sem ignorar, obviamente, o quanto burlamos a lei geral das licitações com nossos muitos critérios de vantajosa inegilibilidade, mas, enfim...

O que incomoda não é não ganhar o patrocínio, mas a sensação nacional de ser garfado, de que participamos dos editais apenas para fazer número, perder no final e legitimar o cambalacho. Incomoda a constatação a posteriori da total e inócua indiferenciação de mérito entre projeto vencedor e projeto perdedor, senão por nomes e sobrenomes dos envolvidos e a história do cara nesse ou naquele grupo que ora opera o butim nos cofres da Viúva, a alegre. O que dói mesmo é o vilipêndio diário da democracia como valor de convívio em que todos cospem e escarram, sem cerimônia, ao contrário, com certo esgar, até, e confessa satisfação. É nós! Tasca! Tasca!

A título de sugestão, proponho que todo bem cultural financiado com recurso público seja de acesso gratuito e universal. Buscar o patrocínio do estado, por esta ótica, implicaria o pressuposto de franquear o consumo do bem produzido ao limite do recurso requisitado.

Se a contabilidade não fechar, é preciso rever a contabilidade, não os critérios basilares do estado democrático de direito em busca de acomodação para o preito dos amigos. Lembre-se dos Amigos dos Amigos (ADA) e pense no que deu o exemplo de compadrio da elite do Brasil!

As burocracias da cultura são verdadeiras capatazias - ou capitanias hereditárias - de uma esquerda corporativa, mafiosa e estalinista que isola desafetos, promove julgamentos sumários de supostos dissidentes (por vezes, apenas pessoas que têm um outro modo de pensar) e aplicam sem dó a pena do ostracismo econômico naqueles que ignoram ou não compartilham seus pactos de convívio - sempre com base no butim do estado.

Este comportamento, aceito pelas elites dirigentes como característico da personalidade local, sado-masoquista por excelência, tem sido determinante para o estado abúlico e conformado da arte engajada que se pratica hoje no Brasil.

Um bando de desavisados confunde arte com justiça social pela metade em nome de seus próprios interesses particulares e não mais esperam nem do estado nem dos miseráveis a que julgam atender senão a satisfação de suas próprias demandas por recursos públicos, o que reafirma (com nova cara) o sistema de fraudes aqui praticado a cinco séculos.

E que nos faz debilóides aos olhos do capital estrangeiro, pueris vassalos prontos a constrangedores rapapés, adultos aviltados pela adulação da subserviência, indivíduos, enfim, que desacreditam de si próprios, de seu potencial de construção do mundo, para pleitear sua subsistência mínima (redundância infeliz) em um sistema social e econômico cuja principal moeda de troca é, em última instância, a humilhação e a exploração de quem trabalha. Pois, afinal, trabalhar é uma vergonha!

Tudo isso cimentado com o dinheiro público em benefício do interesse particular.

Se nós como sociedade não induzirmos o produtor cultural à sua auto-suficiência econômica, como vamos esperar que a obra de arte no Brasil reflita algo mais do que nossa própria fragilidade emocional? John Kennetty Galbrayth dizia que nada priva mais um homem de sua liberdade do que a falta de dinheiro. Algum brasileiro teso duvida?

Manter artistas que não precisam fechar suas contas com o seu público não me parece o melhor caminho nem para as artes e nem para os artistas. Quando penso no que Tom Cruise ganhou em 14 anos de Metro, algo em torno do bilhão de dólar, claro que penso no poder avassalador da indústria cinematográfica americana e no quanto nossos exibidores são forçados a comer mosca de boca fechada, mas não posso deixar de pensar, por outro lado, que ele não é o único e que tais recursos lhe proporcionam uma oportunidade de realizar, inclusive, os seus próprios filmes, como vem fazendo, aliás. (Claro que o Clube do Rancor vai meter o pau no Tom Cruise e na minha citação, mas que se dane, é irrelevante!).

A esquerda se acostumou a falar mal de Aragão e da Xuxa, bem como no passado falava do Mazzaroppi, mas todos os três fechavam ou fecham a sua contabilidade com o seu público. Quando não fecham, adeqüam-se. (Claro que o Clube do Rancor vai meter o pau no Aragão, na Xuxa e no Mazzaroppi e na minha citação, mas que se dane, é irrelevante!).

O papel do financiamento público, nestes termos, é investir para que artistas como Luis Fernando Carvalho, Luiz Carlos Vasconcellos e outros de linguagem sofisticada consigam fechar suas contas com o seu próprio público. E não passar a vida às custas do estado, de patrocínio em patrocínio, sem retorno. Por que a vida é tão boa para os contemplados e tão dura para os preteridos se somos todos donos do mesmo dinheiro público?

É preciso rever isso, os critérios, os agentes, os editais de concessão, a legislação, enfim. Porque essa distorção tem permitido a muita gente que não faz arte viver como artista e, ao contrário, tem condenado muito artista genuíno a sobreviver como músico de banda do corpo de fuzileiro naval ou empregado de burocracias fracassadas, cevando o próprio câncer. (Claro que o Clube do Rancor vai meter o pau no Carvalho e no Vasconcellos e na minha citação, mas que se dane, é irrelevante!).

É preciso rever este quadro de distorção, repito, porque estamos exauridos pela sensação de injustiça e impunidade que paira nos contratos de gaveta do país. Aqui, o desvio é o padrão. Por isso, as estatísticas não dão certo no Brasil! Ou mudamos isso ou vamos, como estamos indo, por água abaixo com a violência endêmica, a impunidade endêmica, a desonestidade endêmica, essa mixórdia autopiedosa e autocomplacente que somos, lodo puro para o lírio de uma vaga esperança em nós mesmos (desculpe-me, mas todo Arnaldo tem uma dose qualquer do messianismo Jabour!).

Precisamos, artistas e intelectuais, que nascemos bem, crescemos bem, comemos bem, moramos bem, vivemos bem, rever o modus operandi da arte e da cultura nas mãos do estado brasileiro, porque essa gente sem fé na vida e sem compaixão que ocupa os interstícios da burocracia da arte e da cultura no país não está fazendo mais do que repetir cinco séculos de fraudes sobre nossas oportunidades de desenvolvimento humano.

A justiça, hoje, no Brasil, é o campo de luta mais importante para se ajustar em todos os setores de atividades sociais e econômicas, porque o modo como estamos operando, como estamos nos relacionando, tem matado as chances de crescimento da maioria da população, em benefício de sanguessugas e cultores de sinecuras do estado.

A passividade está no âmago da sociedade brasileira. Por isso, nossos empreendimentos produzem baixíssimos níveis de liberdade individual e mesmo social (onde estamos até melhores).

Se não são os artistas e intelectuais a pleitear mudanças radicais na gestão do recurso público para arte e cultura no Brasil, quem mais o vai fazer: o CV, o TC, o ADA? Ou o PCC?

U$100 milhões é pouco para o Tom Cruise, mas é muito dinheiro para se entregar assim, de mão beijada, aos mesmos. Sempre os mesmos. Um cala-boca desses quem não quer? Até um gigante abobalhado como o Brasil fica quieto... Tem alguma coisa errada, gente, e não é com o cachê do Tom Cruise, isso é certo...

Brasil, país de ladrões, ladroeiras e ladroagens... 
 

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