28 de junho de 2024 às 16:00
Notas de um trombadinha incidental no mundo do samba
Conformado - conformadíssimo! - com a minha condição de trombadinha incidental, no sentido de um transeunte insignificante, talvez, mesmo desprezível, do debate cultural no Brasil, cujas palavras de pavio curto têm a rara qualidade suicida de cerrar o próprio galho, criando problemas onde o ideal seria semear admiração, vou aqui - e agora - bater de frente com largo espectro da tradição musical brasileira ao produzir esta singela, porém, provocativa notação. Mas, não tenho como evitar o pensamento que me ocorre em seu voleio livre e o melhor é enunciá-lo, de vez e de chofre, até mesmo para sua crítica ulterior, caso se justifique.
O fato é que o samba, o choro, o jazz, o mambo, a rumba, o tango, e algum outro ritmo essencial da música popular contemporânea de que ora possa estar esquecido, surgiram todos mais ou menos juntos e separados - isto é, quase ao mesmo tempo, porém, sem se influenciarem mutuamente na origem - ali por volta do início do século XX.
O estudo da história da música popular neste período apontará aos interessados detalhes curiosos e sincrônicos dessa disseminação da música negra - à exceção do tango portenho - por nações das três Américas cuja hegemonia rítmica, mais que harmônica, mas também harmônica, consolidou-se ao longo das décadas seguintes, até a ruptura por assim dizer epistemológica representada pelo rocknroll, um derivativo envenenado do rithymnblues
Aliás, o blues - bem como o gospell - é um bom exemplo de conservadorismo da economia algodoeira do sul escravocrata que, devidamente inoculado de rebeldia democrática e algum cosmopolitismo do leste, onde a América é menos América e, talvez, mais ela mesma do que nunca, em seu sentido global de terra de imigrantes, desdobrou-se na maciez enjoada e pulsante do soul e de toda a música eletroacústica daí resultante, extremamente livre, experimental, disposta a tudo em termos de comportamento e atitude, não só em nível artístico como também social - fonte indiscutível de vigor da arte musical americana. Sem fronteiras muito definidas à exceção do rigor técnico e da qualidade artística (nos seus melhores momentos, óbvio, lixo cultural o há por toda parte e canto).
Pouco entendo de música, qualquer música, e não meteria as caras na matéria para muito além de onde vim até aqui, porque na verdade não se trata de análise musical, mas antes de uma constatação incontestável: dos gêneros citados, o que mais evoluiu ritmica, harmonica e conceitualmente foi aquele surgido e desenvolvido em uma cultura de profundas raízes republicanas e libertárias, a americana do leste, e que é o jazz.
A dialética entre tradição e invenção é uma dinâmica sutil e sofisticada, que demanda a intervenção da consciência e do conhecimento, pois ao mesmo tempo que é preciso saber reconhecer os elementos históricos essenciais e constitutivos de qualquer arte, é preciso igualmente assegurar aos seus novos aspirantes o inalienável direito à experimentação, a qualquer preço ou custo, sem que ninguém possa tolher as suas invenções com receitas aviadas em um passado remoto.
O jazz, parece-me a mim, guarda este equilíbrio perfeito entre tradição e invenção. Por isso, transformou-se em fonte de inspiração e educação musical para músicos e compositores de todo o mundo contemporâneo. Menos que imperialismo cultural, estamos diante do fenômeno da autenticidade e da espontaneidade que só vicejam em um ambiente social de bastante liberdade individual e de um modelo de mercado menos manipulado e mais amigável ao surgimento do inesperado, do surpreendente.
Uma cultura dinâmica ama a surpresa, ao passo que uma cultura conformada guarda-se a si na sombra da repetição e da obediência.
Ao comparar a evolução e principalmente a diversidade jazzística com o processo de desenvolvimento do choro, do samba, dos ritmos caribenhos tradicionais - rumba, mambo, bolero - e do tango, sou levado a me reportar ao ambiente político e cultural de suas sociedades de origem e olhar para o precário que sempre foi nesses países a sobrevivência da liberdade, tanto do ponto de vista econômico como socialmente falando.
Elites conservadoras, que tratam o artista ora como marginal, vagabundo, ora como bibelô imprestável, adereço pueril cujo valor de mercado jamais se vai equiparar ao de um empreiteiro ou armador, fizeram por confinar a evolução artística desses gêneros a uma linearidade espantosa, se comparada à pluralidade abissal do jazz e o vigor de sua contínua renovação.
O tango, por exemplo, praticamente estagnou em conteúdo e forma, antes e depois de Piazzolla, e eu não creio que o pouco apreço da sociedade argentina pela liberdade como modo de vida possa ser dissociado de tal evidente confinamento, vez que o talento insurgente e insubordinado do mestre argentino às tradições do gênero prova por a + b as potencialidades intrínsecas daquela música como manifestação de linguagem e interpretação cultural da vida nos pampas.
De igual forma, porém com o vigor rítmico intrínseco à negritude, a música caribenha, em termos de invenção e ousadia estéticas, também não se pode comparar ao jazz, muito embora reúna a meu ver elementos suficientes para tanto, mas que não aconteceram, não se expandiram nem se desenvolveram o quanto podiam. E por que? Simples, um ambiente hostil à inquietação, castrador, conservador, que limitou a invenção à sua simples reinvenção e induziu o processo criador à repetição das velhas formas e fórmulas que funcionavam e davam certo em termos de comunicação estável com o público. Um público restrito, de conhecimento e sensibilidade musicais limitados, pouco afeito ao novo, muito em função, creio eu, do excessivo grau de obediência à tradição que marca as sociedades e as culturas daqueles pequenos países, todos eles dominados por oligarquias conservadoras nos seus usos e costumes, quando não ferozes ditaduras militares ou para-militares que dominaram por longo tempo a cena centro-americana. E, volta e meia, inda voltam a dominar.
E no Brasil não foi diferente com o choro e com o samba, cujo subproduto mais livre e ousado é, não por acaso, um subgênero do samba, catequizado em apartamentos da zona sul carioca, em interlocução permanente com elementos harmônicos do jazz, que é a bossa-nova.
Mas, o samba, samba mesmo, de morro e de raiz, por mais que rebole, é preciso admitir que, comparado ao jazz, como música de preto, evoluiu muito pouco, não atingiu um nível de complexidade artística capaz de igualá-lo ao gênero americano, seu contemporâneo, ficou a dever a si mesmo uma explosão criativa que não veio com os anos, não obstante uma surpresa ou outra ao nível do talento individual de um Jackson do Pandeiro, um Pixinguinha, um Cartola, um Zé Keti, ou mesmo um João Bosco e um Luiz Melodia.
O que quero dizer, para exemplificar, é que o samba não produziu um Miles Davis, cuja trajetória por dentro do universo jazzístico vai da tradição à transgressão, sem contar que era preto e milionário ao nível dos nossos empreiteiros e armadores, e milionário de berço, o que aprofunda ainda mais o fosso social que se escava entre seu gênio e a genialidade possível de um Paulinho da Viola, por exemplo, para citar um artista do samba e do choro cujas harmonias e invenções forcejaram em muitos momentos a favor de um revigoramento de ambos os gêneros.
O público e as elites empresariais do setor fonográfico esperam que o samba seja sempre samba, isto é, uma música conformada, dócil, escalada para distrair e engambelar a nossa renitente estupidez, jamais superá-la como o fizeram multidões de estúpidos - porém, libérrimos - músicos do jazz.
O choro, então, coitado, nem se fala! Foi trancafiado por trás das sete cordas dos regionais de fundo de quintal e enterrado por lá mesmo - ao pé da mangueira e da jaqueira - em um labirinto patético de repetição e absoluta recusa a qualquer forma de ousadia ou experimentação. Acabou sob a tutela de funcionários públicos que gostariam de ter sido músicos profissionais, mas não souberam fazê-lo, resultando daí uma frustração amarga que se traduziu musicalmente por um excessivo apreço à tradição, ao limite mesmo de um imobilismo mórbido, por vezes necrófilo, que faz um jovem de vinte anos de idade compor como um velho de cento e vinte anos, que é mais ou menos a idade provecta deste senhor, senão paralítico, reumático, que é o choro.
E, repito, não há na estrutura funcional do samba nem do choro, como de nenhum dos demais ritmos latinos citados, qualquer elemento estrutural que os impeça de evoluir e se diversificar, como há, por exemplo, no maracatu, ou no xote, ou mesmo no flexível baião, cujas modulações binárias os mantém algemados pelo pé no catre de suas origens temáticas para sempre, incapazes que estão de se universalizar, caso em que também se encontram o fado e de certa forma a música flamenca, que pegaram ambas o caminho da roça do folclore mais que a diluição cosmopolita dos bares e casas de show.
Mas é inaceitável que o samba e o choro sejam tolhidos pela obediência servil e a subserviência pueril da sociedade patriarcal brasileira, pois está provado - pela bossa-nova e pelo Japão! - que ambos reunem todos os elementos necessários ao diálogo e à interlocução não só com o jazz, mas também com o rocknroll em suas mais variadas vertentes, hip-hop e música eletrônica, inclusive.
Zeca Pagodinho é um bom sujeito, mas é o túmulo do samba, a repetição em pessoa, pura aliteração, eco de velhos tempos, totalmente servil ao padrão do sambista esperto e bom de jogo, cujo faturamento de popstar tupiniquim não o habilita a dialogar com a fortuna do já citado (e finado) Miles Davis, por exemplo. E deveria habilitá-lo, pelos muitos e valorosos serviços prestados à indústria do disco e de bebidas no Brasil. Fica com os trocados, o grosso acaba entregando ao sinhô. O grosso é a arte.
Creio que a docilidade do brasileiro aos donos do poder é prejudicial à evolução do samba e do choro como músicas possivelmente planetárias que são e acho que essa docilidade (totalmente anti-econômica), essa subserviência atávica do sincretismo afro-cristão está na origem do bom-crioulo, um sujeito que quer agradar, que quer ser aceito, que aceita um trocado, enquanto poderia reinvindicar para si e para os seus a fortuna imensa de sua arte genuína e explosivamente criativa - mas, que foi contida e catequizada, escapou-lhe das mãos, num certo sentido, e o deixou de tanga de índio nos salões de uma elite branca que fez o aproveitamento que podia dessa arte, mas que não detém o DNA dessa arte e, portanto, não tem como reproduzí-la e reinventá-la no mesmo nível em que o fariam seus autênticos provedores.
Assim como os negros americanos puseram pra quebrar a partir do jazz - canibalizando a música européia que lhe é intrínseca -, assim também o sambista e o chorão brasileiros podiam fazer, mas precisariam para tanto de uma disposição muito maior do que demonstraram até aqui para enfrentar suas visíveis dificuldades de diálogo com tudo que não seja eles mesmos e os esquemas com os quais estão acostumados.
O ápice do ser humano, diferentemente do que imagina Luiz Inácio, é a autocrítica e a metalinguagem, ambas originárias de um ambiente social que reconhece (economicamente) a cultura. De modo que perceber as limitações do samba e do choro como discursos sonoros e como conceitos musicais é compreender também em que circunstâncias políticas, sociais e econômicas ambos se desenvolveram e o quanto tais circunstâncias os privaram do nível de excelência a que podiam chegar em um ambiente de plena liberdade criativa.
Mas, sempre é tempo. Tempo de acreditar na importância de ser livre e de se sentir livre, de apostar as fichas mais na impessoalidade criativa que no compadrio medíocre, mais na invenção que na repetição, mais no diálogo que no fechamento. Enfim, sempre é tempo. Mas as pessoas precisariam rebolar mais. Aliás, como sugere o samba. E o choro. Mas, sem choro. Só alegria! E aproveitar agora que o Brasil começar engatinhar de fraldas no tapete da sala da democracia; quem sabe essa criança não escapa para o quintal, onde ainda se amontoam os pretos?
Pronto! Já fiz meus inimigos do dia! No Brasil, é mais fácil fechar a janela do que mudar a paisagem...