07 de julho de 2024 às 16:00
Jabuticabas históricas
Assisti ao Tropa de elite (2007), de José Padilha, em uma cópia pirata fornecida por um amigo, de um só fôlego, no horário de trabalho, lá pelas cinco horas da tarde de um dia qualquer da semana, com legendas indicativas em inglês. Destinada, portanto, aquela cópia, ao público externo, californiano, presumo, que é uma espécie festiva de carioca endinheirado e levemente esquerdista da Costa Leste da matriz mundial do entretenimento.
Pelo visto, a estratégia não funcionou e o excelente thriller de propaganda da indústria bélica - cujo principal sub-produto é o tráfico de drogas - não obteve a cobiçada indicação para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2008.
Resta-nos, contudo, a nós brasileiros que torcemos pelo êxito da indústria cinematográfica nacional, com a mesma paixão do futebol, assistirmos a fita da perspectiva do público interno e amargarmos algumas conclusões interessantes, pisadas pela repetição ancestral de nossos cacoetes mentais.
Como todos os idiotas de plantão desse imenso país, também eu me deixei capturar, ao longo da vida, pelas nossas películas de exaltação ao banditismo, elas pareciam expressar um desejo sincero de justiça social não encontrado na sociedade brasileira e, via de regra, depositavam nos ombros dos nossos desestruturados criminosos (Escadinha, Gordo, Cara de Cavalo, Lampião etc.) a réstia de humanidade e dignidade que muitos dos nossos cineastas parecem não ver ou encontrar no homem comum do Brasil - justamente aquele que poderia comprar um ingresso para ver um filme - e nem nas elites de onde a maioria deles provém.
Vi e revi Assalto ao trem pagador (1960), Lúcio Flávio o passageiro da agonia (1977) e, para ficar nos mais recentes, Os matadores (1997), O homem do ano (2003), O homem que copiava (2003), O invasor (2001), Cidade de Deus (2002), Carandiru (2002) e em todos esses repete-se a cumplicidade (simpatia) entre cineastas e protagonistas à margem da lei.
Tropa de elite não é diferente, apenas que os protagonistas são da polícia, o que, sob certo sentido, indica uma mudança na filmografia nacional ao incluir e acolher o bandido oficial - criado há duzentos anos para capturar pretos fujões e, de preferência, supliciá-los para o gozo da corte - no rol dos heróis dos nossos cineastas financiados com dinheiro público (redundância esperta que nos obriga a pagar duas vezes pela mesma mercadoria, aliás, como de regra acontece com a maior parte do que é produzido e comprado no Brasil, inclusive, livros!).
Vão em todos esses filmes de exaltação ao banditismo uma maldade sem fim com o cidadão brasileiro cumpridor da lei e pagador de impostos, que é a maioria esmagadora da população. Porque estas películas, financiadas por arranjos escusos e compadrios malvados, não se limitam ao seu objetivo central - que é a apologia, muitas vezes não remunerada (como é o caso de Robert De Niro), da indústria bélica e seu principal sub-produto, o tráfico de drogas (não obstante nem todas as fitas aqui mencionadas tratem prioritariamente de um e/ou outro) -, mas se dedicam, de modo incansável, à exaltação, maniqueísta e pueril, do que há de pior no homem como se aquele comportamento desviante, doentio, fosse a única resposta possível a uma estrutura social - a brasileira - marcada pela injustiça, pela a assimetria de oportunidades entre ricos e pobres, e pelo quase total desinteresse de nossas elites intelectuais, políticas e econômicas pelos fundamentos vitais do estado democrático de direito.
Em nenhum dos filmes citados, os cineastas tomam a perspectiva da lei, que é o fio de Ariadne que nos pode guiar para fora do labirinto e das mandíbulas sedentas de sangue do grande minotauro - monstro pós-moderno, filho de um leviatã ensandecido (e não vai aqui nenhuma referência ao festival de Bob Redford!), baseado na extorsão via impostos para a manutenção de uma máquina pública que se recusa a prestar os serviços a que se destina.
O poder da mídia é inquestionável, mas o poder da arte da cultura é ainda maior. Digo isso porque estou convencido de que a maioria do povo brasileiro, em sua prática de vida quotidiana, repugna tais valores que desprezam a lei, tanto o povo quanto as elites, e apenas assiste-se a esses produtos de nossa incipiente indústria do entretenimento por uma questão de torcida, no fundo, torcemos para que os nossos cineastas encontrem os caminhos do financiamento auto-sustentável e possam desenvolver argumentos e roteiros que nos acolham e incluam a todos nós, não só aos seus bandidos de predileção como a expressão de um desejo, infantil e confuso, de transformação social.
No caso específico de Tropa de elite, veja você a fragilidade do roteiro. Um preto pobre vai cursar Direito (Direito! Ouviu bem?!) na PUC (PUC! Ouviu bem?!) para terminar estourando a cara de um fodido com um fuzil!
Quem ganha com este argumento de merda senão a indústria bélica e seu principal sub-produto, o tráfico de drogas? O Bope? Claro que não!
Estudei na Puc, graças ao crédito educativo, uma espécie de ProUni dos milicos da ditadura. Aquilo lá não é um antro de fumadores de maconha acumpliciados com o tráfico, Armínio Fraga sentava-se à direita de nossa sala no ciclo básico do departamento de Ciências Sociais.
E a Cândido Mendes? Está aí, há cem anos, formando advogados, não são majoritariamente gente escrota disposta a estragar o velório de favelados!
O Brasil, sem contar o colosso da Petrobrás - que ora faz uma transição nebulosa para a área do patrocínio cultural tão escura como o óleo de sua antiga atividade-fim -, construiu uma porção de coisas legais como a Fundação Getúlio Vargas, por exemplo, a USP, a Unicamp, a Embrapa, o movimento extrativista da Amazônia, o ITA, o IME, a Embraer (militar também faz coisas legais, gente!), a Rede Globo, o SBT, a Record, o carnaval industrial do Rio de Janeiro, o carnaval dos abadás de Salvador, os bois vermelhos e azuis de Parintins, o vinho do Vale do São Francisco, as jornadas literárias de Passo Fundo, inventou, inclusive, entre outras maravilhas da nossa geografia humana, o Veríssimo (o filho), um cara que raciocina sem dor, e o Manoel de Barros, um poeta que simplesmente dispensou o raciocínio para falar direto à vida... caramba! A lista é imensa! Será que em nada disso impera a lei, será possível que o Brasil tenha finalmente inventado a jabuticaba histórica e elevado a corrupção gerneralizada à condução de todos os negócios de sua vida pública e privada?
Óbvio que não. Sem adesão majoritária da população ao exercício da lei, o edifício social simplesmente implode, rui à revelia de Barbosa, porque o que caracteriza a ação criminosa é justamente o desinteresse daquele grupo específico pela manutenção do bem-estar comum. Isso é física, não sociologia.
Portanto, o aproveitamento irracional e acrítico de situações de transgressão como a do filme Tropa de elite, onde um estudante de Direito faz justiça pessoal com o brinquedinho malévolo da indústria bélica nas mãos, em nome de uma instituição corrupta (porque assassinato e tortura compõem a cesta básica da corrupção, institucional ou não), é parte apenas do descompromisso, ligeiro e festivo, de nossos cineastas para com os valores da maioria dos brasileiros que vive de modo honesto as suas vidas anódinas.
Por que não filmam o caso do Pimenta, que matou a namorada em um haras e está no cinema, até hoje, enquanto o pai da moça sofre a dor de acreditar na justiça? E o caso do Andrade, preto e pobre que denunciou o preconceito racial em um clube de policiais paulista? Ou, então, por que não filmam o espetacular assalto ao Banco Central em Fortaleza? São muitos os brasileiros, como eu, que reconhecem-no como ação de perícia e excelência ainda maior do que a retratada em Onze homens e um segredo (2001). Uma história e tanto, polêmica, polissêmica e de difícil enquadramento, afinal, o que é mais criminoso (diga lá, Proudhon!), assaltar um banco ou fundar um banco? Para ficar no terreno delicioso das transgressões, inconseqüentes e californianas, que iluminam as faces rosadas de nossos cineastas de plantão...
Se há um mérito incomum a ser proclamado em torno de Tropa de elite é o fato de estar mobilizando o debate e produzindo linhas lúcidas de brasileiros como Rosiska Darcy de Oliveira (O Globo, 21/10/2007), vale a pena prestar atenção no que diz esta mulher, muito mais do que nestes filmes de exaltação ao banditismo.Para fechar, quero mencionar dois filmes magníficos da nova safra do cinema brasileiro e que nada têm a ver com o universo aqui tratado: Desmundo (2003) e O caminho das nuvens (2003), o primeiro com a arte soberba de Osmar Prado e o segundo com uma dupla infernal de atores, aquela menina Abreu, Cláudia, e Wagner Moura, este, por sinal, impecável no raso e desprovido de filosofias Capitão Nascimento, de Tropa de elite.
A pergunta básica de um capitão que quer sair fora do Bope é O que vou fazer fora daqui com tudo o que aprendi aqui e que só posso fazer aqui, fora da violência consentida e estimulada pela impunidade de um estado extorsionário, fora das armas que calam a sensibilidade e a razão, fora do maniqueísmo corporativo e primário do policial brasileiro, fora de tudo isso que me permitiu acender a mim e me reconhecer a mim como um ente social e economicamente válido para mim e minha família, onde agora germina um filho desejado no ventre da mulher amada?
Essa pergunta, a mesa de bar onde o roteiro foi escrito não faz. Nem pode. Já sai pago da lata o filme... Prefiro, então, a cretinice ligeira de Táxi Driver (1972), pelo menos se pagou com o dinheiro de idiotas como eu...