13 de julho de 2024 às 16:00
Eternidade & imortalidade
Vamos deixar claro: qualquer mera asseveração que faça reporta-se, sempre, aos estritos limites de meus corpo e consciência, duas separações que busco - incessante e inutilmente - juntar a título de enfraquecer certa tendência humana à dualidade. Sem a ilusão de superá-la, contudo. (Não quero parecer sabichão pelo fato apenas de que falo pelos cotovelos e me interesso por muitos assuntos).
Isto posto, digo que - para mim - eternidade e imortalidade não são exatamente a mesma coisa, muito embora se confundam. Se penso na eternidade posso aceitá-la como o mistério inefável do tempo, a grande questão metafísica, segundo Borges [1899-1996], que nos atravessa - fisicamente - ao longo da brevíssima existência. Toda existência é breve em face da eternidade do tempo, que antecede e sucede a tudo e todos.
Mas, se penso por outro lado na imortalidade, a imortalidade da alma, tendo a considerá-la senão inútil - além de inconveniente -, apenas como a projeção de nossa insatisfação com a vida breve que nos foi dada e que está fadada a ser por princípio incompleta, inconclusa, improvisada e, por isso mesmo, nos faria desejar que perdurasse para além do corpo, seu veículo e continente. Como uma segunda chance da plenitude imaginada. E roubada pelas contingências.
Lembro-me de algo que li de certa feita acerca de como Lavoisier [1743-1794] aceitou com tranqüilidade o seu destino. Rico cobrador de impostos, caído em desgraça por obra dos acontecimentos da Revolução Francesa [1789], ele simplesmente fez - no cárcere - um balanço de sua vida e considerou o resultado geral um dos melhores a que poderia ele mesmo chegar. Tinha sido um homem feliz, em paz consigo mesmo, e portanto aceitava com total desprendimento, sem revolta, a idéia de sua execução.
Aquilo me chocou. Um pouco. E me enterneceu. Muito! Afinal, creio que nem em duzentos anos de existência eu lograria o desfrute de tamanho assentamento entre meus atos e anseios, ao ponto de reconhecer a hora da morte - na guilhotina! - apenas como o epílogo equivocado de uma vida íntegra de prazeres e paixões do espírito.
Mas, aprendi algo ali, naquela leitura ligeira. Aprendi que a imortalidade é desnecessária e corresponde, na maior parte de nós, a um desejo de revisar a vida, sendo válido, creio, repisar que não há outro modo de viver senão deixando mesmo que as coisas escapem, que tudo escape, até que nós próprios também escapemos e vai-se o átimo em que existimos para o bebeléu - sendo o beleléu uma categoria metafísica de difícil tradução para fora da cultura brasileira, se é que me faço entender. Vou tentar explicar. O beleléu seria por assim dizer uma espécie de limbo esculhambado, avacalhado e... esculachado!
Não sinto qualquer necessidade de ter uma alma imortal e de viver eternamente. (Olha a confusão aí, entre uma coisa e outra!). Minha avó, aos cem anos, urrava sobre a cama, agarrada aos lençóis, com seus olhos de jabuticaba desbotada lançados sobre mim, Eu não agüento mais, meu filho! É muito tempo!... Eu a compreendia inteiramente e compartilhava sua aflição. Também já tive a ambição de ser longevo, mas hoje entendo a vida como a oportunidade de pagar o que devo! Fiz tantas burradas, cometi tantos erros e alguns crimes imperdoáveis que talvez isto explique este fervor ao contrário com que ora declaro minha predileção por uma idéia da morte como a plenitude do esquecimento, mar para onde corre desabalado o Amazonas do tempo. Não que já esteja doido para me ir deitar de sapatos - imagem do poeta Mário Quintana [1906-1994] para o conforto da morte. Não é isso. Já o disse: quero aproveitar a vida que me resta para amortizar as dívidas impagáveis que contraí neste mundo. Mas, com toda a honestidade intelectual possível a um sujeito como eu - e que não é nem muita nem tanta -, digo que não vejo porque eu ou qualquer outro deveríamos durar para sempre em nós mesmos. Deve ser insuportável! Como não dormir nunca.
Talvez, Deus, na sua solidão infinita e no seu amor infinito, grite pelas galáxias - como minha avó - Não agüento mais!... E o Universo ali, parado em seu negror medonho, indiferente, a deslizar na pista de gelo da eternidade... Não! Sinceramente! Tudo que desejaria para mim é a tranqüilidade de Lavoisier diante da invenção horrenda do Doutor Joseph Guillotin [1738-1814] e a insanidade jacobina: olhar para o que fiz - no caso dele, a lei da conservação das massas, catso! -, pensar em como desfrutei laboriosamente os prazeres indizíveis do espírito dentro do paletó de carne e muito simplesmente dizer, como um bom francês, je mon vais...
Por outro lado, o terror da morte que me apavora - e vou confessá-lo aqui pela primeira vez - é acordar do outro lado da cidade-do-pé-junto com a história da minha vida pronta e acabada para revivê-la eternamente, repetindo a cada manhã do novo tempo - o tempo borgeano, circular e imóvel - todas as milimétricas besteiras que fiz, de modo recorrente e sem alteração possível. Passaria lépido pelos acertos, os erros é que agarram na vitrola, não é fato?
A morte seria, assim, a prisão definitiva no cárcere da memória - ao contrário do que tantos supõem quando falam no aprisionamento do corpo. Neste meu horror, ao contrário, o paraíso do homem é o breve instante fugidio que ele tem para inventar sua eternidade. Tudo depois da morte seriam apenas as lembranças redivivas do que fizemos, mais o que poderíamos ter feito - e não o fizemos, seja lá porque motivo - ao longo da breve existência.
Eu reexaminaria dia após dia - sendo que imagino os dias na eternidade como unidades de longa duração e extremamente complexas em sua profusão de ínfimos detalhes - cada um de meus atos, pensamentos, sentimentos, como eles se sucederam dentro das circunstâncias dadas e como poderiam ter sido, para mais ou para menos, se tivesse por vezes movido um único dedo mindinho em uma direção, não em outra. Ou mesmo ficado imóvel, duro e teso, durante esta ou aquela borrasca. A eternidade seria, assim, uma sucessão interminável de "se" face a um "porém", que corresponderia ao que foi feito de fato.
Um horror, em suma, a morte como a imagino, se imagino a permanência da consciência dentro dos meandros da memória individual. Esta que nos concede certa unidade diante da gravitação universal - que a tudo suga para o buraco negro do esquecimento.
De qualquer forma, creio, mesmo que acorde com um barulho desses lá do outro lado da cidade-do pé-junto é provável que, com o tempo, eu me acostume. Afinal, com tudo se acostuma. Mesmo Deus, na sua solidão infinita e no seu amor infinito, não é possível que passe todo o tempo berrando pelos confins como a minha avó em seu leito de centenária enfarada.
Portanto, também eu, desperto para o horror da memória eterna, vou dar um jeito de me conformar com as burradas que fiz e lançar meus pobres olhos de imortal sobre os melhores aspectos de minha fátua existência como indivíduo, a que estarei preso para sempre. Não vai ser fácil, mas diria que - se assim o for - eu mereço o castigo, afinal, ganhei a vida de mão beijada e não havia porque desperdiçá-la com tantos equívocos brutais - como o fiz - gravados para sempre na caverna da memória. Eu que me agüente, então, é o melhor que faço...