02 de outubro de 2024 às 00:00
Palavra viva
Minha vontade se perdeu de mim
Em algum ponto, o desejo recusa a si mesmo
Olho para as coisas como elas igualmente me olham:
Sem vontade de me ter
Ou entrar demasiadamente em contato
As palavras não me chegam ao chão da boca
E quando vêm, afogam-se no vau seco de saliva
Banho-me na poeira
Nada digo
Morro quieto todos os dias
São muitos os que me objetam
Também não tenho ânimo para lutar por direitos
Ignoro direitos
Tudo que me ocorre é o cansaço
Extenuado, exangüe, sonho o charco e o lírio
Quero a brisa
Penso o sol sem camisa
Os pés descalços na terra
Tudo que me ocorre
É o beijo na face dos filhos - amores desnudos
Dizer-lhes com os olhos da minha estupefação:
Por favor, não se matem!
Deixem doer!
Sobrevivam com alma!
Não é fácil estar vivo desde a sola dos pés
Até a medula
Pesquem algo que está no ar
Para além das partículas vazadas de luzSigo com as horas
O coração arrancado
Nada que disser
Nada vai mudar
Apenas declaro meu entendimento
Quanto à importância essencial do amor
Saibam os que possam
Mais nada
Nenhuma intenção afirmada
Nenhum juízo
Nenhuma determinação
Como o vento, vou sendo varrido
Atravessado por gerúndios infames
E outras fomes
Vou morrendo sem dar a Pedro o que é de Pedro
Nem a Judas o que é de Judas
Sigo sem afirmações
Nem julgamentos
Só em meu caminho
Entendo, então, que a multidão também vai só
E sofro por isto à beira do abismo
Sua dor é minha dor
Seu medo é o meu medo
Mas, quanto aos seus sonhos
Eles nada têm a ver comigo
Não sonho
Imagino
Imaginar é renunciar aos sonhos
Troco os céus por minhas pobres mãos
E obro e vou... triste e feliz...
Uma coisa é a palavra dita
Outra coisa é a palavra viva