06 de outubro de 2024 às 16:00
A rebelião do homem
Trabalho, única e exclusivamente, para o indivíduo, o fortalecimento do indivíduo, sua autocrítica e elucidação histórica, sua transformação em bunker de si mesmo, quando ser a si já significa inteiramente estar no outro e com o outro, porque não há, verdadeiramente, outro modo de alcançar a plena individualidade.
Sobrevivo graças a alianças pessoais. Sem subsídios estatais nem institucionais. Nada. Acordo e durmo todos os dias da vida livre do peso deste saco de bondades e é muito compreensível que instituições e corporações, casamatas do homem coletivo, o sem-rosto, rejeitem, por princípio e constantemente, as minhas propostas de negociação, o que torna cada vez mais precária e difícil a minha sobrevivência pessoal - vez que todo o dinheiro do mundo tem sido aspirado [por narizes ardentes] para o topo da pirâmide, sem dó nem piedade - e abatam-se as conseqüências disto sobre meus descendentes, para seu infortúnio e meu pesar. Entretanto, é assim. Que fazer, perguntaria Lênin [1870-1924], pai fundador do homem coletivo como instituição de Estado. Eu não sei! Só sei que estamos todos na dependência de indivíduos cada vez mais livres e completos em si mesmos para reverter o desastre que se avizinha e que consiste na falência humana, fálica e maternal.
Só os indivíduos se interessam por tais temas e eles são cada vez mais fracos e impotentes no interior de sociedades que os reconhecem apenas por sua capacidade de hiperconsumo ou de servir às corporações - privadas e/ou estatais - sem questionamentos de qualquer ordem, excetuados aqueles de natureza sindical, pois não ferem em nada a funcionalidade e a dinâmica do sistema. Sorrir vale, chorar é que não pode. E o que é o homem, pergunto, sem sua dor e sua lágrima? Não basta inflar uma mulher de vagina mentolada como fazem alguns, todas as tardes, no posto de gasolina da esquina de casa, para substituir suas necessidades primais de afeto e cooperação em rede.
É compreensível que as corporações e as instituições ignorem isto. Incompreensível mesmo é a persistente construção, pela sociedade civil, de um conceito de democracia que exime o povo de sua autocrítica, consagrando-se sua voz - em uníssono nas urnas - como a voz de Deus. Vox populi. Vox copula. Vamos abrasileirar de vez este ditado insano em nome da verdade dos fatos!
É compreensível que os beneficiários deste sistema não lhe queiram alterar a configuração instintual sado-masoquista, mesmo quando esta se afigura uma bomba-relógio diariamente atrasada por nossa imensa habilidade em postergar ao futuro a resolução de questões que nos são fundamentais, ontológicas. A fome, a primeira delas. Todas as fomes. A fome de amor e de se sentir amado adiante de todas as demais. (Esta a fome que me faz fumar, desesperado, para aplacar a inércia que me enrijece em relação à tranqüilidade que, como adulto, vi esvair-se, gradativamente, entrededos, em uma colossal paralisação de todas as minhas chances como homem social amigo de seu tempo.)
Tenho sido deixado de lado por instituições e corporações há bem mais de trinta anos, já. E não me sinto nem um pouco feliz nem honrado por isto. Antes, pelo contrário! Lamento. É um erro delas tratar como inimigo ou adversário a um livre-pensador. Quanto mais fortalecida a individualidade, mais fortes as instituições e o contrário disto - sorry - não existe nem está contido. Não há outro meio de capacitar o indivíduo para a vida social, se é que isto ainda é possível depois de tanto logro e trapaça, senão em permanente diálogo com sua subjetividade, seu mundo íntimo, senão remetendo-o, constante e continuamente, a si mesmo, ao seu sistema familiar, ao seu próprio país e cultura e às inúmeras possibilidades do milagre da vida neste mundo. Sempre que há interação verdadeira entre as pessoas e só entre pessoas de carne e osso, gente que vai apodrecer. Essas são o que realmente importa à vida. É com estes que ela conta, de fato.
Por que não apoiar a rebelião do homem quando estamos acuados diante do bicho que salta de nossos interiores, sem travas, pronto ao sangue dos inocentes, como em Columbine, Ontario, Beslan etc.?
Como diz Jô Soares, a sensibilidade de um artista deve expressar-se, de preferência, por todos os meios possíveis e imagináveis. Nunca é demais amar o homem. Mesmo quando ele vai virando bicho...
Vamos em frente! Sempre alegre e sempre em frente, como recomendava Henry Miller [1891-1980]. Nunca peça licença a ninguém para ser o que você é.