08 de outubro de 2024 às 16:00
Deus não tem religião,
só time de futebol
Compareci, a convite de uma amiga querida, em uma palestra de uma escola de conhecimentos esotéricos - seja lá o que isto for! -, em que o palestrante, sujeito de aparência tranqüila e fala mansa, discorria sucintamente acerca do processo de ressurreição a que cada homem faria jus dentro do plano de Deus.
Apesar da clareza do conferencista - mesmo desconsiderados os muitos senões que o tema suscita a mim -, o fato é que o assunto contorcia-se por um caminho tortuoso. A ressurreição presumida cumpria, à sua explicação, um percurso glandular ao longo do corpo físico - da pineal ao baixo ventre, por assim dizer - até a sua realização efetiva. Confesso que cochilei, por vezes.
O que mais chamou a minha atenção, contudo, foi o fato de que este processo, digamos, ressurrecional, donde uma vida nova, a partir de uma fonte divina, chega a realizar-se no indivíduo, aparecia inteiramente condicionado ao estudo dos mistérios que envolvia e, portanto, de certa forma, diretamente relacionado ao engajamento do interessado em escolas do gênero.
O contraditório, em tudo aquilo, é que o palestrante valia-se e parecia reconhecer o exemplo do Cristo, que seria, então, uma entre muitas manisfetações assim chamadas crísticas, cuja principal característica repousa em sua missão transfigural ou transubstancial, isto é, converter a carne em espírito e verdade.
Ora, mas o Cristo não praticava mistérios! Viveu entre pescadores, publicanos e samaritanos, optou decididamente pelos pobres e profetizou o reino de Deus justamente a partir de prostitutas e cobradores de impostos, não é exatamente uma salvação para eleitos, convenhamos. Pelo contrário, trata-se de transgressão intangível à razão humana - e nisso reside, mais que a grandeza de seus milagres relatados, a infinita sabedoria de sua pregação que se pode consultar segundo os livros de memória oral que a fixaram.
Para mim, é inconcebível que se aproprie da palavra do Cristo sem praticá-la especialmente por sua misericórdia e compaixão, são atitudes tão definidas, inconfundíveis, que chega a ser risível ouvir quem quer que seja a discorrer com voz melíflua acerca dos seus ensinamentos e terminar por sugerir que o aprendizado de tais mistérios possa repousar na doutrina de uma escola de esoterismo - onde se cultiva o ocultismo, o círculo fechado, a restrição, em suma.
Mas, diabos!, o Cristo é a negação exata de tudo isto! O Cristo é a democracia plena em seu sentido único de tolerância e respeito mútuos, é amor incondicional pelo inimigo - isto é, o demônio, isto é, a afirmação do que nos nega a nós o ápice da divindade que já está em nós -, o Cristo é sobretudo perdão, perdão infinito para si e para o outro, justiça de igual modo e mais aquela bondade misericordiosa que emana diretamente do Pai sobre a miséria de nossa vida moral.
Deus, pelo Cristo, não nos propõe qualquer estudo esotérico para raros e para poucos, carajos! Propõe-nos solidariedade, fraternidade entre homens e bichos e plantas e pedras, unifica-nos de tal forma que é complicada a tarefa, por vez incontornável, de ceifar mesmo a vida de uma pulga! Porque Deus é vida. E vida em abundância!
Ora, deve haver um mistério qualquer é nessa gente, nós, os pecadores contumazes, os descaídos, os errantes, os que se repetem à sombra de sucessivos crimes contra a própria felicidade, deve haver aí, no interior dessa massa de almas cujos corpos parecem fadados ao fracasso pelo que neles há de inevitável, deve haver no interior dessa gente uma energia colossal, capaz de mover abismos, pois do contrário - imagino! - Deus não apontaria de modo tão persistente as suas baterias para tal criatura desencaminhada. Esquecer-nos-ia, e pronto, que se dane o homem!
Mas, não. Insiste. Ninguém, nem mesmo o homem, que é tolo por natureza, insiste demasiado no que não faz sentido; e que sentido faria, portanto, ocupar-se Deus do que igualmente sentido não faz, conforme supõem estas tristes escolas de mistérios a respeito de nós, homens comuns, massa ignara, almas de supermercado?
Não obstante muitos desavisados se emprenhem pelos ouvidos, nunca vi nascer daí nada que frutificasse, de modo que certas coisas ouve-se muito mais por consideração ao afeto por outrem do que por qualquer avidez em vir a merecer ou mesmo construir - glandularmente falando! - uma vida eterna. E quem precisa de uma vida eterna se viver estazinha aqui com amor e alegria?
No fundo, o grande mérito do homem comum é não ter a decidida ambição da imortalidade e estar disposto a levar uma vida anódina e decente apesar disso. Para mim, está claro, isto explica a predileção do Cristo por essa gente simples que não pára de nascer a cada geração, sem qualquer pretensão de vir a ser súdito no reino dos céus. Escrava que foi a vida inteira aqui na Terra.
Não há nada que negue mais o Cristo do que o privilégio dos eleitos.