11 de outubro de 2024 às 16:00
Ninguém escapa a si mesmo
Hoje sofremos de um modo estranho, como se não estivéssemos sentindo dor. Sorrindo, alguns, fingindo, outros, com ironias e sarcasmos, muitos, e a maioria com discreto cinismo.
Mas, no íntimo, estamos sofrendo, apenas, sofrendo a perda gradativa de nossa humanidade em face de uma situação de permanente indiferença frente aos sentimentos. O homem contemporâneo é aquele que caminha de costas para a sua dor. Muitos silêncios comprovam isto, bem como continuadas algaravias. Há os que falam demais para não ouvir a si próprios e há aqueles que desabam por sobre a falta de palavras para explicar o que sentem.
Tornou-se injustificável sofrer e sentir dor na sociedade do espetáculo, tudo precisa ser feérico e trepidante para ser digno de nota, não é à-toa que cada vez mais aumentam-se os decibéis e a carga de ruídos por todo lado.
Aturdidos, em um grotesco baile de carnaval sem alegria, catatônicos diante de nossas escolhas, a maior parte delas inconsistente, circunstancial e - por que não dizer? - oportunista, vamo-nos moldando para o fracasso inevitável de nossos relacionamentos. E quando, afinal, ele acontece, como conviver com esta ruína abominável em que nos transformamos sem dar conta do que estávamos fazendo para isto? É doloroso, mas, ainda aqui, proibimo-nos de sentir. Temos de nos defender. Mas, defendermo-nos do quê, exatamente, senão e primeiro de tudo de nós mesmos, da maneira como nos fechamos gradativamente para as oportunidades da vida? Tudo porque já não sabemos distinguir muito bem o autêntico do falso nem o espontâneo do artificial. E mais, talvez prefiramos, hoje, o falso ao autêntico e o artificial ao espontâneo. A que ponto chegamos! Onde isso vai parar?!
É imensa a dor, em nossos dias, por isso tantos estupefacientes. Para uma sociedade estupidificante. Não há fuga. Estamos condenados a ser o que somos: ou no nosso pior ou no nosso melhor. Ninguém escapa a si mesmo. Eis o fato.
Mas, se não estamos dispostos a molhar o coração no vinho do sentimento, se não estamos dispostos a sofrer a dor por nossas escolhas face aos dados do destino, então, é essa anestesia geral que por aí se verifica; então, é essa desertificação crescente de nossas emoções e de nossa afetividade face a uma vida sem surpresas nem inesperados, nada nos surpreende, afogam-nos rotinas insignificantes, capazes de esfolar os sensores do corpo ao ponto mesmo de torná-los insensíveis e indiferentes. O sentido dentro do qual nos movemos despreza a lógica da beleza, que é gratuita e desinteressada, ignora o outro, sem o qual nada somos, de fato, e reduz a vida a uma pequeneza desprezível.
Ainda assim, não podemos sofrer, recusamos esta condição essencial do crescimento e do amadurecimento do espírito, sendo que - em contrapartida - o gozo e a alegria, por sua natureza, infligem-nos, por vezes, cargas colossais do mais puro e elevado sofrimento, que é justamente a percepção inconcebível de seu privilégio.