13 de outubro de 2024 às 16:00
A bela cebola
Escrever não chega a ser um ato de mudança que se origina da reflexão. Não pelo menos com a velocidade e a urgência imediatas que desejaríamos em face da questão que se examina e nos propõe, por sua força questionadora, o exercício mesmo da redação como forma de organizar, expor e fazer o registro de um pensamento.
O ideal seria, para nossa fugacidade, que ao fim e ao cabo da escrita, as transformações pensadas e ansiadas já começassem a deitar raízes pela realidade afora de nosso entorno e nossos acalentados sonhos de mudança se vissem, assim, plena e velozmente realizados.
De fato, quando digo ‘o ideal’ o faço considerando mais a nossa (minha?) ansiedade por mudança do que reconhecendo tal idealização como factível ou mesmo desejável. Não o é. Como na frase atribuída ao biólogo francês Lamarck (1744-1829), em tudo que a natureza atua, ela atua muito lentamente.
E é, em suma, dessa lentidão por assim dizer cósmica, dessa lassidão do tempo mergulhado no infinito, que se constitui o conhecimento humano da realidade, aquele tipo de conhecimento mais profundo, que vence sucessivas camadas de ilusão, deixa para trás nossos próprios esforços de manipulação da explicação dada e alcança, por fim mas nunca finalmente, a serenidade que constata, sem acrescentar nem subtrair, a realidade possível de ser apreendida por determinado sujeito sob certas circunstâncias.
A realidade, em suma, é uma bela cebola que se descasca bem aos poucos e de modo contínuo...
Portanto, sabemos apenas o que podemos saber, muito mais até do que desejaríamos, daí o caráter remissivo e retrospecto do exercício da escrita, em luta sempre com as sombras de Platão no escuro da caverna, sendo a caverna propriamente dita o crânio em que se guarda o hardware dessa máquina de pensar que somos nós. (Quanto aos software, não me pergunte onde se guardam e se são muitos... rs...).
A atividade intelectual é remissiva e retrospecta, estará sempre, no mínimo, um passo atrás do que se sente, no sentido de sua elaboração possível, não há como tocar o presente, o longo agora de nossa breve existência, o instante, com o pensamento que se elabora como súmula e conclusão, vivemos entregues aos sentidos e aos sentimentos, são estes que estabelecem nossa conexão com a realidade presente e nos conduzem por nossa interação com o outro e o meio social como um todo, portanto, nasce da observação silenciosa de nossos sentidos e sentimentos um auto-conhecimento capaz de nos prover de leme e bússula no vértice da realidade que se opera à presença de nossos corpos e talvez seja este o objeto último da atividade intelectual: fixar-nos a percepção de que dependemos inteiramente de uma compreensão cada vez mais profunda de nossos sentidos e sentimentos para apreendermos com acuidade a realidade em que vamos imersos como em uma bolha e nela agir com a afirmação que julgamos satisfatória, tanto no sentido de sua conservação quanto de sua transformação, em função de nossa consciência de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.
Sentir é, de fato, o treinamento supremo da mente para o viver.
No mais das vezes, escrevemos e pensamos com o fito de melhor compreender e expandir a experiência do sentir em nosso interior.
Ver-se, portanto, anestesiado do próprio sentir, ou limitado em fazê-lo o mais amplamente que possa desejar, implica diretamente em uma perda do sentido de realidade como esta se lhe chega. Não há, portanto, privação maior nesta vida do que a privação dos próprios sentimentos e nada afeta mais a sua própria relação com o mundo e consigo mesmo do que se ver privado do mais amplo, livre e irrestrito sentir.
Mais uma vez, é a liberdade que se levanta como valor intrínseco e inseparável da vida do homem: só sentimos verdadeiramente quando somos livres e só livres nós podemos nos imaginar como seres humanos, porquanto o fundamento de nosso pensamento, de toda e qualquer atividade intelectual, está na liberdade de nossos sentimentos e nos encontros que sua expressão nos proporciona, pois, e isto precisa ficar definitivamente claro e cristalino [para mim?], a vida humana só se opera por intermédio de seus relacionamentos, este é o único milagre possível e, mais que isso, necessário.
A liberdade de sentimentos, então, de um ponto de vista pragmático, como nos exige a todos esta época de estapafúrdia e veloz obsolescência, serve-nos para nos pôr em contato com aquelas criaturas que nos ajudarão a nós a aprofundar a experiência de sentir – e de amar – em consonância com os nossos mais íntimos e inexplicados anseios. E intenções. Tais encontros eletivos, quando nos falam do fundo da alma, dão forma e cor às nossas afinidades essenciais com o outro e também conosco mesmo. Amar é também uma forma de se conhecer a si.
Não é, portanto, uma condição meramente política a liberdade. Antes, ontológica, fundadora do ser que somos e do modo como sentimos e vivemos a vida.
Em suma, o buraco é sempre muito mais embaixo do que o conseguimos imaginar, nessa aventura do amor e do pensamento. E da liberdade.