16 de outubro de 2024 às 16:00
Voz no labirinto
Uma das tarefas recorrentes da atividade artística, qualquer que seja ela, é explicar-se a si e ao outro. É que a linguagem, qualquer linguagem, é metalinguística por excelência. E por essência. Falar é recorrer ao dito para [tentar] tocar o não-dito, explicá-lo. Explicitá-lo. Expô-lo. Trazer das trevas à doce penumbra da voz - seja a voz lápis e papel ou tela e pincel ou vídeo e pixel, pouco importa - aquela partícula [ou onda?] de luz que se apanhou com a mão, em algum momento impreciso entre o desejo retumbante de morrer e a necessidade ainda imperiosa de estar vivo. A arte é uma necessidade, não um motivo.

A arte de que falo, tampouco, resume-se às virtudes do espírito. Falo da arte de viver, projeto pessoal e intransferível pelo qual se decide em dado momento e se o leva adiante, de forma persistente, ao encontro inevitável da mais pura solidão - que é o botequim onde, invariavelmente, todos acabamos ao fim da noite, à medida mesma de nossas desilusões quanto à natureza de tudo que se move à volta. Tocar a própria singularidade é exilar-se em certo sentido do mundo de comparações e repetições de nossas relações sociais, balisadas por preconceitos e julgamentos mútuos.

Avançamos muito pouco, neste particular. E não só em países atrasados, de economias periféricas. Também no centro do capitalismo, apesar de todos os esforços consideráveis e relevantes que a individualidade tem feito, em muitas frentes, para tornar a vida, senão bela, menos opressa que seja, o fato é que os valores hegemônicos ainda apontam diretamente para nossas ridicularias. O dinheiro tem servido de desculpa para a maioria de nossas calamidades e também a miséria. No entanto, o que está em jogo, por todo o tempo, é uma certa recusa do topo da pirâmide em conceder às massas globais uma oportunidade real de experimentar as contradições do pensamento ocidental como o vimos praticando, desde o Iluminismo [sec. XVII e XVIII], quando ser mau se tornou bom e vice-versa.

Pensar, sentir e elaborar uma resposta articulada à própria vida deixou de ser privilégio de poetas e artistas para constituir-se em alternativa real ao caos instalado no planeta. Remeter o indivíduo à sua própria singularidade - embora conversa de maricas para muitos formuladores de políticas públicas ou estrategistas de publicidade - parece ser, senão a única, uma dentre as poucas possibilidades existentes para mitigar a desordem crescente na subjetividade, pessoal e coletiva, da espécie. Este homem cada vez mais sem amor, para quem o outro é não mais que uma sombra distante, resume-se como instrumento de si próprio e seu desastre: alguém que não soube de si, alguém que não percebeu nada além do próprio desejo, alguém que simplesmente não foi.

Como um tipo de herói de Kafka [1883-1924] do espírito, esse homenzinho pouco amoroso, quase um homúnculo high-tech, percorre infinitas estações digitais e templos de hiperconsumo absolutamente em paz com sua indiferença. Não há o que fazer. Não há porque mudar.

Os rapazes gomalinados de Wall Street continuam a aspirar todo o dinheiro para o topo do mundo, os fundos de pensão dos aposentados americanos transformaram-se em cassinos-commodities, bem como os demais fundos espalhados pelo planeta. Os empregos, estes vão ceifados à moda antiga, as previdências públicas são magnificamente falidas por administrações padrão Harvard, a idade da população mundial caminha a passos de lebre para os três dígitos e os fóruns públicos e sujeitos interessados em discutir abertamente estas e outras questões relativas à sobrevivência de longo prazo têm sido isolados em seus sítios solitários - para ali permanecer predicando no deserto.

Esta voz, anterior à fala, que estrutura a linguagem como símbolo de um desejo no coração do homem - o desejo de viver em oposição à necessidade de morrer, seu par oposto complementar - é a voz mesma que, disfórica, afásica, tateia o caos da realidade sem pretender decifrá-lo, apenas inquire, perquire, por vezes percucientemente, por vezes não, porquanto a um ponto todo pensamento perde-se em seu labirinto. [Nessa medida, gostaria de registrar, minha prosa desalinhavada segue o mesmo pesponto da poesia: aqui, nada se sabe, tudo se interroga e o pouco que se afirma é, uma vez mais, sempre como pergunta. As respostas as damos com o corpo, este que morre].

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