17 de outubro de 2024 às 16:00
Aos amigos, as batatas!
A elite brasileira é muito engraçada. De Sorbonne até o pescoço. Espaço na mídia, dinheiro na conta. Os justos. Os letrados. Bons nomes, bons copos, bons papos. Tutto bonna gente, certo? Certo. Mas, engraçada.

Querem, apenas e tão somente, graças ao discernimento de anos de boa mesa e boa cama, razão e lei. Os sem-terra podem, até, ter uma causa justa, mas perdem a razão ao atropelar a lei. Maravilha! Déscartes exulta no túmulo de granito, enquanto as vítimas de Eldorado dos Carajás reviram-se em covas rasas. Querem a lei, esses caras. É o crime da janela contra a paisagem.

O IPEA, uma instituição das elites, informa que trinta e cinco por cento da população brasileira, em 1996, vivia na linha de pobreza, isto é, na corda bamba, sem lei nem razão. Cinqüenta e cinco milhões de párias à margem da vida; vinte e dois milhões - sempre segundo o IPEA - no limite da indigência. Cito as elites. Muito bem. Que lei e razão amparam o indigente?

Alguns tiveram a coragem de falar em estupro político com relação ao episódio da invasão da fazenda dos filhos do presidente Fernando Henrique Cardoso pelo MST. Um desrespeito. Uma indelicadeza. Uma falta de civilidade. Como sentar-se à boa mesa ou ir buscar um vinho e um charuto na adega com um barulho desses no soalho no país? Não pode! Gente feia, os pardos, quando não entendem o máximo que lhes concedem as elites, um voto regular em algum iceberg do PT oficial. MST nem pensar, é coisa para inglês ver. E financiar.

Números do Moreira Franco, outra memorabilia das elites. Fluminenses. Tsk! Os números do Moreira. Só números das elites, note bem. Os dez por cento mais ricos do Brasil ficam com cinqüenta por cento da renda produzida e os cinqüenta por cento mais pobres ficam com pouco mais de dez por cento. As razões para isso? A lei! A lei de mercado. A velha e boba mão invisível de Adam Smith a bater a carteira vazia de milhões de miseráveis nascidos para calar perante a razão e a lei.

Ora, façam-me o favor, senhores! Comam quietos o caviar do remorso, derrubem sucessivas garrafas do uísque da indiferença, mas não enxovalhem com pruridos o brado político dos excluídos. Não se invadem terras devolutas nem griladas. Terras assim, tomam-se assim, na marra, simplesmente. A invasão da fazenda do presidente Cardoso e seus filhos foi gesto mero de propaganda política, ora bolas, só isso. Espuma para o champanhe da mídia. Nenhuma infâmia. Nenhuma violação. Jogo de cena, apenas. Rolha.

A necessidade desconhece a lei. A lei e a razão descem abaixo do instinto? Homo homini lupus. Como pode a miséria ter escrúpulos? Como alguém pode ter a cara de pau de falar em lei e razão com estas prisões brasileiras abarrotadas de milhares de pardos - muitos sem julgamentos, outros sem processos - amontoados em cubículos de metro quadrado aos quarenta, cinqüenta corpos de pura raiva e insânia? Quem tem o descaramento de falar em lei e razão em um país assim, desse jeito assim, se há sessenta anos, pelo menos, desde Vargas, que ninguém das elites se coça pra valer a fim de diminuir o grande fosso que separa o coração de um brasileiro miserável de outro brasileiro rico, despenhados que estamos todos em um desfiladeiro de injustiças, a viver à custa das mais caras e altas irracionalidades? Quando o povo do campo tenta tomar nas mãos o seu destino e desatino, fala-se, então, em lei e razão. Muito engraçada essa turma!

Estupro político é viver abaixo da linha de pobreza, estupro político é a condição prisional brasileira face à aposentadoria de desembargadores e parlamentares, filhas de militares etc. Desrespeito à lei é o próprio exercício da lei feita em detrimento de condições mínimas de existência para a universalização dos serviços públicos e do direito.

Vou-me embora para as cavernas. Ensaio sobre a cegueira. Bons copos. Bons papos. Tutto buona gente. A lei aos inimigos. A razão aos inconformados. Aos amigos, as batatas!



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