29 de outubro de 2024 às 16:00
Uma lágrima por Gabriela
Guardo a ilusão - provavelmente por conta da atividade intelectual, será? - da utilidade do pensamento como instrumento de reflexão social, mesmo em um tempo circuitado como este em que vivo, onde fios desencapados à chuva condenam a todos nós, das metrópoles, a uma existência de sustos fatais. Tal qual os meninos dÁfrica a saltitar em uma perna só, feito sacis involuntários, sobre um tapete de minas terrestres prontas a devorar-lhes o ventre.Esta ilusão persegue-me, admoesta e inflinge suplício, mesmo em um momento como agora, quando, alquebrado pela dor que irmana, enxugo lágrimas convulsas - pelos pais da menina assassinada ontem às escadas da estação do metrô de São Francisco Xavier, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, que habitualmente freqüento.
Fugido da dor inumana para o refúgio desta atividade trãnsfuga que é escrever e tentar aplacar a perplexidade - atônita, esbaforida - com alguma réstia de racionalidade perdida nos desvãos das cidades, revejo pela segunda vez nos telejornais do dia as imagens gravadas - pelas câmaras do metrô - do momento do assalto que culminou com o assassinato ocasional de uma jovem de qüatorze anos de idade.
É difícil resistir ao obnubilamento da dor, mais que de qualquer outro sentimento, porque é a dor que me abate diante do fato, não o ódio nem a raiva - que seriam sentimentos, talvez, mais de acordo com a estupidez do acontecimento.
Contudo, iludido assim quanto à utilidade de meu pobre pensamento, fugido, repito, da estupefação, fixo meus olhos embaçados e marejados nas cenas registradas pelo circuito interno de tevê do metrô. E o que vejo, então?
Vejo um policial civil, absolutamente despreparado para agir em meio à população civil, tentar render - sem a mínima técnica de abordagem - os dois assaltantes que agiam do lado de dentro da cabina da bilheteria. Óbvio, o infeliz toma dois tiros à queima roupa e cai ao saguão, como não poderia deixar de ser diante de suas próprias imprudência e imperícia combinadas. Pagou pela incompetência de sua ação tresloucada e inconseqüente, individualista, nervosa, em suma, como já disse, absolutamente despreparada.
Mas, como a desgraça não anda sozinha, os tiros trocados entre o policial infeliz e os dois assaltantes acabam por atrair a atenção de outro policial civil que, em nova e pungente demonstração de total insensibilidade à população civil, lança-se em uma caçada de improviso aos bandidos em fuga. Ao meio caminho entre as duas estupidezes, estava a garota - que pela primeira e última vez tomaria só o trem do metrô. Não o tomou. Viu-se alvejada ao peito por uma bala perdida que no dia seguinte a reduziria, prematuramente, a um punhado melancólico de cinzas para ser sopradas ao vento do desengano, que é como vivemos hoje, nestes dias de guerra informal.
Quem disparou a bala perdida que atingiu Gabriela, aos qüatorze anos? Não é preciso exame de balística para concluir: foi o Estado brasileiro, que arma funcionários ineptos para pensar a segurança pública e são treinados por seus (irresponsáveis) superiores para privilegiar o improviso, a imprecisão, a ação arriscada, o heroísmo gratuito dos baixos salários, mas, sobretudo, treinados para ignorar os direitos civis e levar-nos a todos a mais e mais sofrimentos desnecessários e dores injustificáveis, diante de métodos de ação puramente baseados no instinto, na ingenuidade, mesmo em certa dose bem-intencionada de burrice.
O primeiro compromisso da segurança pública é com o bem-estar e a vida dos indivíduos, não com o patrimônio. Por conta de setencentos contos da féria da bilheteria do metrô, dois policiais civis chamaram a si as responsabilidades pela morte da jovem estudante, filha amadíssima, ausência irreparável, graças a tudo de errado - desde a análise do fato, até o enfoque de sua prioridade - que ambos fizeram ao longo do breve, alucinante episódio.
Que aja assim um bandido, é compreensível, a insanidade está ao seu lado como mãe e companheira. Todavia, que com igual ensandecimento e total desinteresse por vidas alheias ajam dois fucnionários licenciados pelo Estado para portar arma de fogo, aí já é caso de polícia.
Polícia?! Que polícia? [26mar2003]