09 de novembro de 2024 às 16:00
A rosa púrpura do envolvimento
O Brasil tem o dom do ridículo, somos muitas vezes ridículos e achamos que estamos, como se dizia, abafando! Somos ridículos, por exemplo, ao copiar os piores hábitos e costumes dos americanos, mas não prestamos a mínima ao que eles conceberam de melhor (e olha que não foi pouca coisa, apesar de a queda do ano 2000 para cá...).
O ridículo, como categoria filosófica, é uma grandeza que nos ajuda, no dia a dia e mesmo na história, a dar conta de nossa pequeneza, da mediocridade intrínseca ao escovar diário - e necessário - dos dentes e dos sapatos, entre outras coisas pelas quais não podemos ser lembrados, mas que, entretanto, não devemos tampouco esquecer.
O ridículo, em seus muitos desvãos, foi mestre de mestres do teatro como Shakespeare e Moliére, entre outros que nos brindaram com a percepção aguda de seu lugar na existência pessoal e social do homem - um mamífero, sob vários aspectos, que tende ao ridículo inexoravelmente.
O ridículo nos deu de presente os maravilhosos palhaços e sua versão mais culta - os comediantes - e também a mais refinada, os irônicos de todos os tempos, como o velho Machado, entre muitos, capaz de rir de tudo o que fez para ser ele mesmo em uma sociedade brutalmente desigual e inóspita à liberdade (de expressão e de coração) como a brasileira.
Estes são os ridículos do planalto, de elevação, cujo olhar de águia sobre a atmosfera azul do planeta ensina-nos o respeito e a admiração pela caminhante formiga ou mesmo as rastejantes víboras com suas barrigas em dança sinuosa sobre a terra.
Mas existe, também, o ridículo da planície, do baixio, por vezes tenebroso e sanguinário como o do fascismo (negro e vermelho), e outros menos robustos, porém, igualmente perniciosos, que gravitam em torno do poder e sua manutenção - perpetuidade impossível a que perseguem os homens. Ridículos.
Na reta final do segundo governo de Luiz Inácio - cujo feito histórico foi desfazer uma série de ilusões que tínhamos acerca de a pureza e a integridade de nós mesmos - e em face de sua elevada popularidade, decorrente, sem dúvida, de algumas políticas de reparação - tímidas, até -, não são poucos os balões de ensaio lançados diariamente nos céus da grande imprensa a testar o índice pluviométrico da viabilidade de um terceiro e consecutivo mandato.
Experimenta-se, aqui e ali, com o aval dos donos dos grandes jornais (meia-dúzia, se tanto), a eficácia do discurso da emenda constitucional e outros artifícios vários, válidos para legitimar mais uma de nossas ridicularias, enquanto o próprio presidente nega - sem renegá-la peremptoriamente - a intenção antidemocrática.
No Brasil, como se sabe, juiz joga e faz jus ao bicho, ao ponto mesmo de um magistrado aposentado da mais alta corte do país andar por aí, para cima e para baixo, atrás dos prazeres afrodisíacos da permanência no poder, nada mais ridículo a uma certa idade.
Portanto, se quiserem dar esse golpe branco do terceiro mandato, tal no governo anterior deu-se o golpe da reeleição, problema não há. Somos todos ridículos, basta ajustarmos à noite, de preferência na casa do Sarney, os termos da emenda, quem leva o que, quem fica com que, e passa-se o rolo compressor uma vez mais sobre uma população faminta, desassistida de justiça, de educação deficiente e descontinuada, pronta a engolir qualquer embroglio como já engoliu a abolição da escravatura, a proclamação da república, a revolução de 1930, o golpe de 1964, a derrota da emenda das diretas-já, o confisco da poupança pela Zélia, a reeleição de FHC e, mais recentemente, a farsa do mensalão, protagonizada, aliás, por um dos mais emblemáticos bufões políticos do país desde o fim da ditadura militar (páreo duro para Jânio Quadros ou Paulo Maluf).
O bufão, como se sabe, além de cantar necessariamente mal para vir a ser um autêntico bufão, cultiva o ridículo em suas entranhas. De qualquer forma, registre-se a ressalva, devemos a Roberto Jefferson uma das mais caras elucidações públicas da história política brasileira, muito embora, como as demais, não vá dar em nada, nenhuma conclusão, nenhuma decisão judicial cumprida. O juiz joga.
Portanto, o negligente povo brasileiro - e sua elite predatória - está pronto e apto a aceitar qualquer novo arranjo que prolongue e perpetue nosso status quo, mesmo que provisoriamente sob a batuta simbólica de um retirante nordestino que passou fome em São Paulo.
Não há novidade alguma no golpe, em mudanças nas regras do jogo com a partida em andamento, somos useiros e vezeiros em quebra de contrato, retificações de última hora, letra miúda para vista cansada, fazemos isso com a própria mãe ou o filho querido, que dirá com o estranho que vai anônimo pelas ruas, a quem não consideramos um igual, muito menos um concidadão.
O brasileiro é um apátrida que não se sente em casa em seu próprio país, pois sabe que a qualquer momento pode ser posto para fora de onde está - ou a bem do Príncipe Regente (Ponha-se na rua!) ou de algum coronel de engenho ou madeireiro asiático ou de algum plano melevolamente civilizado de remoção de favelas e cabeças-de-porco para o embelezamento das cidades...
O poder é transitório, só o ridículo é permanente...
Não surpreende se mais uma vez rasgarem aos nossos olhos a Constituição e nos enfiarem goela abaixo um terceiro mandato, tal e como nos enfiaram, reto acima, o imposto sindical sem fiscalização alguma! E nós aceitamos, doendo, calados, passando a pomada japonesa da conformação prostática...
Nada disso surpreende mais.
O que surpreende mesmo é a filha de doze anos de idade de um casal amigo nosso, de minha mulher e eu, que apresentou aos pais uma proposta de contrato de estudo em troca da contratação de um canal de televisão por assinatura onde pudesse assistir aos episódios de Rebelde, comédia de situação mexicana de grande sucesso entre os pré-adolescentes de sua faixa etária.
A garota capturou um modelo qualquer de contrato na internete, adaptou as cláusulas ao assunto em questão e propôs a assinatura de um acordo pelo qual ela se obriga a resultados de excelência na escola - inclusos o curso extra-curricular de inglês e o de matemática pelo método kumon - em troca do presumido lazer com o culto aos mexiacanozinhos da escola de elite do tal seriado, um bando de sexualizados precoces sem a menor hipótese do que possa ser o amor...
Surpreende a mim que tenha partido dela a iniciativa, que a tenha formalizado em um pedaço de papel - como fizeram pela primeira vez na vida dos povos os pais fundadores da democracia americana, em 1776 - e que tenha negociado com seus pais a assinatura.
Há muitas esperanças embutidas neste pequeno gesto e pequeno movimento. Uma geração plugada por horas na rede mundial de computadores, a conversar concomitantemente com meio-mundo, via programinhas de bate-papo em tempo real, massacrada por doses cavalares de hiper-consumo, entregue à despolitização do quotidiano pela supremacia dos mercados sobre a vida comunitária; de uma geração assim, tida como individualista e egoísta, alienada ao extremo, por obra da anti-pedagogia de seus mestres e o auto-engano de seus pais, eis que brota, tênue, frágil, a flor do compromisso, o princípio do comprometimento, que guarda em botão a rosa púrpura do envolvimento e da liberdade conquistada, construída com as próprias mãos, sustentada sobre o caule espinhoso de responsabilidades livremente escolhidas.
Tomara ambas as partes cumpram o acordo. Tomara fiquem satisfeitas. Tem um país se reinventando ali, naquele microcosmo familiar. Um país melhor que o do Sarney e seus fiscais de ocasião, melhor que o do Collor e seus confisco, melhor que o do Fernando Henrique e sua própria reeleição, melhor que o de Luiz Inácio e seu imposto sindical sem fiscalização alguma...
Mais que rebeldes de qualquer espécie, o Brasil precisa de uma geração de homens e mulheres que ame despudoramente a liberdade e honre os acordos que fizer entre si.
A atitude da garota parece despropositada, impertinente, inadequada ao contexto familiar, ridícula, em suma. Mas, não o é. Repito, tem um país se reinventando ali. Torço por ele e repercuto-o nas animadas batidas de meu cinquentenário coração.