Chegamos ao hotel Ker e fomos instalados em nossos quartos por um cubano a seis meses em Buenos Aires, não lhe perguntei pelo bloqueio à Ilha nem pela cirurgia do Chaves... são temas espinhosos de um passado que insiste em se manter em pauta e que representam grande parte da obsolescência da América Latina, há outras... Depois, veio um cara endireitar o controle remoto da tevê – que, por sinal, não apresentava qualquer defeito, o cubano é que não o soubera operar – como se tivéssemos nós a intenção de ficar plantados no quarto a assistir televisão. Não tínhamos.
Um hotel adequado, de bom padrão, Tom Jobim de fundo, sempre, na recepção e um café na esquina em frente. Tentei tomar um café na esquina, mas fechava às 20h. Resolvemos andar. Dessa vez, com a câmera fotográfica a tiracolo.
Tenho um entendimento, talvez arcaico, talvez infantil mesmo, de que uma cidade de verdade pode e deve ser visitada a pé, mesmo que canse o pé (e eu levei meu tênis de caminhada justamente para essa empreitada de cruzar a cidade).
Minha mulher, que naquela ocasião fazia, há sete meses, um mestrado em políticas públicas de saúde na filial sul-americana da Universidade de Bolonha, o que a obrigava a permanecer por uma semana a cada mês em Buenos Aires, mostrava-se de todo familiarizada com la ciudad, senti alegre orgulho disso, curioso sentimento... é confortante chegar em terra estrangeira e ter um conterrâneo seu para ciceroneá-lo, eu acho... vem por aqui, vamos por ali, não, aqui é mejor do que lá, preciso lhe mostrar algo interessante, foi assim que ela fez conosco e foi mucho, mucho bom. Bueno. Hola! Qué tal?
Descemos a Marcelo T. de Alvear, que a Márcia já pronunciava com sotaque portenho, diga-se, dobramos à direita na Uruguay, de novo à esquerda na Paraguay, passamos pela Plaza Libertad, às escuras que estava, para alcançar e percorrer a 9 de Julio em direção ao Obelisco, rumo à Corrientes, era a minha chance de entendê-la brevemente, a grande avenida, senti-la e, principalmente, estar ali. Foi a primeira vez que atravessei as suas pistas, então. Caipira assustado e sem compreender de pronto o posicionamento dos sinais.
A noite estava quente, a arquitetura é rica e nostálgica, a fúria demolidora não se abateu sobre o centro histórico de Buenos Aires como o fez em grandes áreas do Rio de Janeiro, e ainda mais em Friburgo minha, coitadinha... Caminhei observando usos e costumes do lugar, na qualidade de antropólogo urbano amador que sou, a caçamba de lixo, por exemplo, uma presença constante ao longo dos passeios, a camelotagem mestiça ao rés das calçadas, as belas recepções de hoteis construídos por volta de 1940-1950, o onipresente e pós-moderno MacDonald's nas imediações da Corrientes em mais de três endereços, a vida feérica sob as luzes de néon e o que elas inspiram em uma mente provinciana, não obstante tantos anos meus de Rio de Janeiro, que, como se sabe, não chega a ser uma metrópole iluminada ao modo novaiorquino ou tokiano (ai nós aí, Patrícia!) do termo, muito antes pelo contrário...
Surpreso mesmo eu fiquei ao sair do restaurante onde degustamos uma boa massa, acompanhada de um tinto honesto, embora argentino (risos), e me deparar com uma cabeçada, expressão carioca que designa um monte de gente junta e na mesma direção, na saída dos teatros, que na Corrientes se enfileiram um atrás do outro, rumo aos restaurantes e cafés.
Como, fiquei me perguntando, estupefato, uma população em plena crise econômica, que não anda nada fácil a vida na Argentina de Cristina, ainda consegue manter cheios os seus teatros? Respira-se uma compreensão pragmática da arte em Buenos Aires, concluo, o fazer artístico, ali, não se resume a veleidade, capricho, exibicionismo, ou mesmo perda de tempo como para certos espíritos brutos dos trópicos, a arte e a cultura ali me pareceram vistas como necessidade essencial do ser humano sob a pressão da existência. Ou algo próximo disso.
Subimos a Corrientes, entramos à esquerda na Esmeralda, descemos pela Tucumán e dali de volta à 9 de Julio, atravessamos para o lado do Teatro Colón, a fim de contemplar de perto o colosso, belíssimo. Mais à frente, encontramos o Teatro Nacional Cervantes, já na avenida Córdoba, este bem sofrido, apesar de sua bela fachada (creio que havia uns andaimes indicando uma possível reforma em curso).
As fotos do primeiro dia, o último de novembro de 2012, mostram bem esse trajeto noturno: pessoas elegantes e a pé pelas ruas como já não se vê habitualmente no centro do Rio ou de São Paulo; em mi Buenos Aires querida, a classe média ainda se veste bem para ir às casas de espetáculo, ou à sinagoga, e depois sai a pé pelo centro, onde se come e, pelo visto, ainda também se mora.
A beira das calçadas são ocupadas por pequenos e sucessivos painéis que por vezes cumprem o duplo papel tanto de impedir a travessia perigosa nas esquinas como também anunciar majoritariamente espetáculos do show business em geral. Tony Bennett, que passava pelo Brasil, estava a caminho de lá, assim como Madonna, aliás, Evita...
Claro que há muitas outras coisas, prosaicas e mundanas, inclusive recitais de poesia, anunciadas pelos postes, paredes e demais espaços disponíveis nas calçadas do centro de Buenos Aires, não sejamos ingênuos. Eu é que não quis ver. Mas, minha filha e o namorado divertiam-se a cada novo prospecto encontrado dando conta de mais uma oferta sexual incrível com personagens de nome inspirado. Não me pergunte qual!... Chegamos mesmo a avistar um rapaz que fazia a distribuição das safadas filipetas...
Para completar a narrativa do dia, escrevo aos poucos e no recesso de fim de ano, quero citar algo que achei engenhoso. A numeração nas quadras é toda ela regular e as ruas não ficam trocando de nome a cada esquina, de modo que a numeração do quarteirão em que você se encontra é a mesma em todas as demais ruas paralelas àquela. Fácil, portanto, se achar e difícil, portanto, de se perder em mi Buenos Aires querida. Ora, e o que mais deseja o visitante do que se sentir orientado em um lugar que lhe é desconhecido? Gracias!
Ainda na 9 de Julio, voltando para o hotel, vi passar uma dupla de adolescentes, um de patins e o outro de esqueite, já por volta das 10h da noite, e fiquei curtindo, de longe, seu hábito saudável. Iam pela rua do canto, a mais próxima à calçada. Pareceram a mim seguros em relação ao trânsito, em relação a tudo, e aquilo era o mais refrescante da cena, em uma noite a 25 graus, poder estar em paz e tranquilo com o seu habitat. Vibrei por eles.
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