Almoçamos em Puerto Madero, ao sair de Camenito, e depois seguimos a passear às margens do Prata, que corre ao largo, lento e silencioso. Fomos a pé para a Avenida de Mayo, já premeditando uma parada no Café Torttoni.
Ao passar pelo Ministério da Defesa, que tem à frente uma extensa área arborizada, tive a quase certeza de ouvir uma sabiá laranjeira e resolvi fazer uma rápida gravação para checar depois, pois até então não sabia de sua ocorrência em amplo território da América do Sul.
Entrei na Casa Rosada, ao fundo da Plaza de Mayo, símbolo da resistência civil argentina ao regime militar (1976-1983), sem grandes expectativas, mas não deixa de ser interessante perceber como o poder se organiza, por exemplo, em relação às artes plásticas e também à representação dos símbolos e personalidades nacionais. Um ponto delicado do meu olhar em relação à nação argentina, que deixei para o final.
Os quadros, em sua maioria, com algumas exceções, me pareceram fracos, em especial aqueles que representam personalidades históricas da política do continente, em particular, os mais recentes. A Argentina parece irmanada intrinsecamente com a história política da América do Sul, tive essa sensação, e achei isso bacana, mas também meio cafona. As figuras todas protagonizam muito heroísmo para pouco resultado histórico, ao fim e ao cabo. Um continente de caudilhos e ditadores é o que é a América do Sul, com honrosas e raríssimas exceções (Allende, Alfonsín), vamos combinar.
Os quadros, para mim, expressavam isso, esse vazio da retórica, a veia estufada no pescoço, o dedo em riste e outros chistes, em face de uma realidade social alheia à liberdade e à democracia, ideais de convívio social que sabemos muito pouco concebidos pelos sul-americanos em geral.
La visitación me fez girar em torno dessas percepções antigas, amplamente amparadas pela nossa realidade histórica.
Eu acho incrível, por exemplo, o que se passa ainda hoje em dia na América Latina, especialmente na Venezuela, Argentina, Equador, Bolívia, Paraguai, onde governos legítimos implementam certos usos e costumes políticos que fragilizam, quando não afrontam, o processo democrático, e o fazem com espalhafatosa convicção, mesmo largo apoio popular, o que me assusta ainda mais. Rompemos conratos como quem rompe o lacre de um maço de cigarro. Populações pobres ou empobrecidas sem nenhuma convicção democrática são um prato cheio para populismos, assistencialismos de todos os matizes, principalmente os piores, os permanentes, os corrosivos, os vitalícios...
Quando penso no não do Lula à aventura de um terceiro mandato consecutivo, penso no horror dessas desventuras tão comuns, na América Latina, de reescrever a Constituição das nações ao bel-prazer do caudilho da hora, destituindo a história, a educação, a cultura, a economia – e mesmo o senso de ridículo – de um sentido mais profundo que o grande balcão de negócio do dia a dia da política. Isso é o fim, mas tem sido assim, por aqui, onde canta o sabiá...
Visitei a sala de Evita Perón com igual espanto. A gente, no Brasil, reclama da nossa falta de memória histórica, mas, francamente, vejo um respeito bastante razoável por Getúlio Vargas (1882-1954) e tudo que ele representa – com todas as contradições de um autêntico caudilho dos pampas – para a moderna construção do Estado brasileiro, acho de muito bom tamanho a atenção e o respeito que lhe dedicamos.
Com relação à Evita, mais até do que Perón, sinto uma certa ênfase no culto da personalidade, algo que se repete, em outros termos, com Diego Maradona, que até igreja tem... Como assim?!
Sei lá, os argentinos se me parecem tão cultos, tão racionais, fazem um cinema tão superior ao nosso em profundidade e tratamento temático, de onde emerge, pois, tamanha e cega passionalidade, dos europeus ou dos nativos ou da mistura de ambos?
São tão sanguíneos e coléricos na forma de fazer política e de lidar com seus mitos que me falta muito para alcançar as contradições de sua personalidade.
Nem Pelé, nem Roberto Carlos, nem Lula, para citar três grandes mitos do Brasil contemporâneo, gozam de culto semelhante entre nós, o que classifico de pra lá de saudável, não só para eles próprios como também para a nacionalidade, que não se vê, assim, capturada por uma suposta personalidade acima das demais. De certa forma também, nossa canção mais intimista, menos grandiloquente, expressa essa medida mais real que atribuímos aos mitos e símbolos em face da pessoa humana.
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