Rio (gravação em 15/08/2006)

Era 2006 e eu estava encanado na ideia de que um sambinha meu em homenagem ao Rio de Janeiro podia perfeitamente ser aproveitado pela comissão organizadora dos Jogos Pan-Americanos que a cidade maravilhosa ia sediar no ano seguinte e pedi ajuda ao Tiquinho para produzir a faixa avulsa, uma entre várias que começava a gravar no seu estúdio.

Tiquinho, então, convocou o multi-instrumentista Ney Veloso, responsável por dois arranjos antológicos do meu primeiro álbum, para trabalhar junto na concepção de orquestração do tal sambinha e quando chegou a hora de gravar as partes a coisa ficou por conta (como sempre) do Jouber, na bateria, do próprio Tico, no teclado, Ney fez o violão de 6 e o cavaco, suas irmãs cantoras completaram com ele os vocais e no baixo... foi aí que vi pela primeira vez a figura ímpar do Marcio Klein.

Já com seu tradicional boné incorporado à indumentária. Junto com o boné, uma personalidade esfuziante, alegre e triste, fumante inveterado, pontas dos dedos amareladas (nessa época eu também fumava e saíamos juntos do estúdio para fazer uma fumaça nos intervalos das gravações), fala mansa, um leve papo cabeça que não chegava a enjoar ninguém, mas que também não deixava de mandar uns toques legais no meio de uma gozação ou outra. Ou seja, de bobo o cara não tinha nada, mas se fazia. Pra amaciar, pegar leve, não esculachar ninguém com sua natural sabedoria. Certa vez, postou em sua página do face:

Música é igual mulher!
Portanto, para uma perfeita sintonia
não se trata simplesmente de amor...
trata-se de amor incondicional.

Já era uma lenda viva quando o conheci, as pessoas se referiam a ele de um modo especial, primeiro com um grande carinho por seu carisma e segundo sabedoras de que estavam diante de um talento único no seu instrumento de eleição.

Uma figura pública do mundo da música na região serrana do Rio, na estrada desde meados dos anos 1980, por aí. Jouber e Marcio, que regulavam na idade, se conheciam desde essa época (1987), Tiquinho, dez anos mais jovem, crescera fazendo som para Marcio Klein tocar e se inspirando na sua levada à la Jaco Pastorius (morto exatamente em 1987, aos 36 anos de vida), e Ney Veloso (um dos inventores do samba-rock ao lado de Bebeto) acompanhara o crescimento daquela turma toda, ora mais de perto, quando em Friburgo, ora mais de longe, quando rodando o mundo na companhia do seu irmão Benito de Paula.

Eu era o peixe fora d'água no aquário musical da minha cidade, onde retomara um convívio regular a partir de 2001, quando perdi minha mãe, embora continuasse residindo no Rio com a família. As condições de produção em Friburgo e a acolhida dos músicos, especialmente esses que já citei, entre outros igualmente especiais, me permitiram pensar na possibilidade de formatar as minhas canções, fonograficamente falando.

O mercado entrava nessa vibe de transmutação total e acelerada em que vai até agora mergulhado... e perplexo... e eu comecei a surfar a onda de dar corpo àquelas canções que compunha solitariamente ao violão (ou de ouvido), sem coragem de dar a cara a tapa.

Não consegui alavancar o sambinha junto ao pessoal do Pan, mas a instrumentação permite perceber com que simplicidade de recurso e com que tipo de abordagem o Marcio fazia o seu contrabaixo se destacar. Naturalmente.

Não tem firula, ouça, não tem malabarismos, virtuosismos exacerbados, nada. Era a simplicidade em pessoa, aquele cara, e aquelas linhas de baixo que fazia, estendidas do samba ao pop sem tropeços, Marcio Klein sabia escolher o ataque certo e mínimo, o comentário preciso para fazer a ponte e entregar o tesouro harmônico a quem o carregasse adiante – o que, em suma, me parece ser o papel do baixo, não? –, passar a bola a tempo certo e sustentar a marcação. Vai qu'eu seguro, rapeise! Parecia dizer.

Ali, eu me apaixonei.

E olha que trabalhei, de lá pra cá, com excelentes contrabaixistas. Edson Lobo, no baixo de pau, é um veneno bossanovista e nervoso. Osias Gonçalves, também no acústico, tem escola popular e erudita e muita manha. David de Moura e Cleber Silva, no elétrico, são uns camaradas tinhosos, suingueiros e malvados...

Mas, havia o carisma do Marcio, que fazia com que todos os seus colegas de instrumento e músicos ao redor facilmente o reconhecessem por sua genialidade, ao primeiro contato.

E é isso. Do mesmo modo que o ser humano é um invejoso rastaqüera, há em nós também uma satisfação extática por estar diante de uma avis rara, um evento singular, mesmo que haja um certo exagero da minha parte, talvez, em classificá-lo como gênio (afinal, não tenho conhecimento musical para tanto). Não importa.

É interessante quando você consegue olhar para alguém ao seu lado, respirando o mesmo ar que você, e, de súbito, suspender o véu anódino do quotidiano para constatar, por seus próprios sentidos e no mais recôndito silêncio de si mesmo, que está diante de alguém muito acima da média. Esse cara não é simplesmente muito bom, esse cara é foda.

E a gente sabia, todos nós, que era exatamente o caso do Marcio.

< Voltar

2024 © CIA DO AR. AÇÕES EM CULTURA  |   DESENVOLVIDO POR CRIWEB  |   POLÍTICA DE PRIVACIDADE